E se eu te disser que nem tudo na vida, é de fato, real. Não, eu não estou falando de desenhos animados ou histórias. Eu estou literalmente falando de fatos, coisas que achamos que vivemos, mas que lá no fundo sabemos ser alguma lembrança desfocada ou mal armazenada por nossa memória. É como aquela sua primeira ressaca, você se lembra? É, aquela vez no bar onde você tomou alguns shots de tequila, acho que você tinha uns 16 ou 17 anos...
— Amora, eu nunca tomei shot de tequila na minha vida! - Ok, quando a encontrei pela primeira vez, em um bar isolado na estrada 465 na saída da cidade, eu não imaginava que a veria mais duas vezes depois. Mesmo que a última tenha sido minutos antes de morrer. — Olha, eu já bebi cerveja, vinho, caipirinha, mas se eu tomar esse negócio, eu vou morrer...
— Turquesa, acertei? — Ela nunca foi boa com nomes. — Olha, primeiro o sal, depois o shot e depois o limão. Pode beber sem medo, eu vou estar aqui por você.
Ela me disse isso novamente cerca de uns 5 anos depois, alguns meses antes de nos trombarmos no posto de gasolina. Ela disse que estaria lá por mim, para sempre. Não achei que seria tão verdade, até porque nunca acreditei em felizes para sempre. Imagina só, uma vida inteira feliz? Por isso que as histórias das princesas acabavam ali, porque depois, seria uma vida miserável, direta até a morte, sem grandes emoções.
— Se eu passar mal, você segura meu cabelo, ok? — Eu disse isso, e alguns minutos depois estava no banheiro nojento daquele bar pondo tudo para fora. Não satisfeita, encontrei um cara meio estranho um pouco antes do bar fechar e acabei dando alguns beijos nele... Na época Branco não era rockeiro, ou pelo menos não usava aquelas correntes ridículas, e o seu amigo, o cara que eu beijei, tinha um olhar meio perdido, mas era bonito para os meus padrões. Vi que foi assassinado algumas semanas depois, na saída do bar, por alguns traficantes de uma gangue rival. Nunca mais voltei lá.
— Eu nunca pensei, que estaria aqui sabe, bebendo com essa galera, eu estou muito fora do meu grupo normal, dá para perceber só pela minha roupa, Amora. — Era estranho, porque nem era tão diferente assim, mas Amora, com sua cabeleira loura trançada, saia xadrez e uma blusa preta, estava mais deslocada no vestuário do que eu, com minha blusa de renda e calça jeans.
— Você é louca, Turquesa. — Ela disse me puxando para um lado da pista, debaixo de uma luz azul florescente. Ali ficamos dançando e rindo por mais de uma hora, até não aguentarmos mais ficar em pé.
Eu senti naquele dia, naqueles minutos, que seus olhos me contornavam. Sentia que haviam pontilhados ao meu redor, e que eu seria destacada daquela realidade e lançada para outra a qualquer momento. A luz dançava entre nós, o azul refletia no violeta do seu olhar, e conforme o calor da tequila subia pelas minhas pernas e braços até a minha cabeça, o rubro do meu rosto contrastavam com as mechas rosas que eu tinha no cabelo. Fora a primeira vez que pintei o cabelo, não parei mais. Foi a primeira vez que bebi tequila, parei alguns anos mais tarde, depois de desmaiar em um show e ir parar no hospital. Já disse que sou fraca para bebida?
— Amora, você ainda está ai?... UUHHHHLLLLL... — Quando sai do banheiro, não encontrei mais ela, mas a minha libido já tinha ido embora junto, e beijar aquele cara foi a coisa mais fácil. Difícil mesmo foi ir embora para casa, foi a primeira vez que ela não esteve ali por mim.
Quando olhei para o relógio naquele segundo depois, desviando o olhar da Amora no posto, agora pensando bem, faltavam 5 minutos exatos para a explosão. Lembro que naquele instante, me senti como no bar aquele dia, cheio de pontilhados ao meu redor, pronta para ser destacada dali, desejando ser destacada dali. Queria mesmo era estar em uma outra lembrança, em uma em que minha memória preenchesse com coisas felizes, com algum rosto conhecido, ou uma música que dá ao seu coração batidas ritmadas. Queria era estar em uma outra realidade, onde aquela Mercedes azul nunca fosse abastecida, onde no segundo seguinte que volto o olhar para Amora, ela não estivesse apontando para Azul, e Branco não estivesse o encarando também.
— Sabe, Amora, naquela vez no bar, você disse que estaria lá por mim, mas me abandonou no banheiro assim que comecei a passar mal, porque devo acreditar em você agora? — Estávamos em cima de uma passarela, pés balançando ao ar sobre a via expressa vazia da cidade as 3 da manhã.
— Porque dessa vez é para sempre....
Não foi.
Pensando bem, apesar de nenhuma de minhas memórias serem extremamente exatas como eu acreditava serem, percebo que todas elas me levam para o mesmo momento. Para esse fim fatídico e nada "feliz para sempre" como da cinderela e muito menos dramático como da branca de neve. A verdade é que, mesmo que eu fosse lançada a diversas realidade distintas, eu me viria neste exato momento, neste mesmo lugar e hora, como a cruz de malta, quatro setas apontando um mesmo ponto... norte, sul, leste e oeste todas apontadas para o centro, todas apontadas para uma mesma catastrófica realidade.
— Não, não vá lá. Do que adianta bater boca com o cara.... Não... — Mas já não adiantava. Branco já tinha saído da conveniência em direção ao Mercedes Azul. As correntes tilintavam em seu pescoço, na mão, um maço de cigarro e um isqueiro branco pequeno. Ele já estava acendendo o cigarro, quando Amora apontou o homem abastecendo.
— Sabe Turquesa, naquele dia eu pensei em te beijar. Você estava linda naquela blusa de renda... Mas eu juro que não te larguei lá porque quis, tive que ir. Me arrependo muito. Voltei lá algumas vezes, antes da morte do amigo do Branco, na esperança de te encontrar de novo, mas agora sei que nunca ia dar certo.
— Eu percebi, mas não sei se estava preparada para te beijar naquele dia. Mesmo com as tequilas.
— Eu sei. Você ainda estava se libertando. Seu pescoço ainda estava manchado de rosa, e a blusa apesar de linda, ainda tinha preso na manga, o arco de plástico onde devia ficar preso a etiqueta de preço da loja. — Ela riu naquele momento, mostrando onde estava o arco e aproveitando a deixa para acariciar meu rosto.
— Eu deixei de propósito, na verdade. Seu eu fosse expulsa de casa, eu ainda tinha a etiqueta de preço. Era só dar um jeito de prender de novo e devolver na loja. — Uma colega tinha me ensinado como fazer esse truque, ela já tinha feito isso até com sapato. — Mas não fui, então tenho a blusa até hoje.
O vento soprava forte na passarela. A via era bem iluminada e dava uma boa vista da cidade. Naquele momento, a mão dela ainda estava parada sobre o meu rosto. Seus dedos deslizaram sobre o meu cabelo, bochecha e se aproximaram da minha boca. Lembro que foi a primeira vez que meus lábios tocaram o dela, que minhas mãos abraçaram sua cintura e que meus olhos gravaram os seus cor de violeta tão próximos, segundos depois de nos beijarmos. Tinha calor ali, um calor intenso, mas aconchegante, o tipo de calor que vem do sol em um dia frio de inverno sem nuvens no céu. Eu senti que podia ficar ali para sempre, com suas mãos em meus cabelos e sua boca colada na minha. Senti que ali era o meu lugar, pensei por um instante, que ali era o momento que todas as setas da minha cruz de malta estavam apontando.
— Você vai estar aqui por mim, Violeta?
— Para todo sempre, Turquesa.
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Cor de Amora
General FictionSe você tivesse apenas 7 minutos para contar toda a sua história de vida, por onde começaria? T. ou Turquesa, como preferir, escolheu contar como Amora (ou Violeta) se encontraram em uma noite de verão em um bar de caráter um tanto quanto duvidoso...