Era dia. Quem sabe um dos dias mais quentes que já vivemos até então desde que havíamos nos mudado para o Níger. E sinceramente, eu detestava aquele lugar pois em nada lembrava a minha terra, em nada me lembravam o Brasil que eu tanto amava. Não, eu não havia ido pra lá porque queria, pelo contrário, apenas acompanhava as ideias malucas de meu pai, que aliás me deixavam extremamente irritada pois a ideia inicial de visitar Niamey, havia partido dele, guiado pelo que ele dizia ser um chamado exigente pelas almas daquele povo, mas o povo em si, já era estranho, pelo menos para mim, me irritava a forma como dançavam, cantavam e até riam por qualquer coisa.
Só gente louca riria, nas condições que eles se achavam. Não tinham saneamento básico, não tinham asfalto, nem mesmo tinham casas feitas de alvenaria, o que sinceramente era uma loucura, viver naquelas casinhas de terra, com tempestades de areia, sujavam tudo, sabe o que é tudo. Você tinha acabado de tomar banho, se entrasse numa tempestade de areia, pode voltar ao chuveiro completamente coberto de areia, crostas de areia, eu estava extremamente infeliz, desde que havíamos nos mudado pra acompanhar aquele casal, que tinham adotado inúmeras crianças naquele país, que agora já eram jovens andando pra cá e pra lá, dando risada, e fazendo algazarra dentro da creche, o que eles tinham para estarem tão felizes?
No Brasil, tínhamos uma casa, com saneamento básico, comida na geladeira, água tratada, podíamos sair de carro por uma rua asfaltada e tínhamos supermercados, lojas e farmácias, perto de nós, tudo acessível, lá sim éramos felizes. Eu? Eu era uma jovem, de quase 17 anos, prestes a cursar psicologia, indo a igreja todos os dias e servindo a Deus, tocava, cantava, cuidava de crianças, paquerava, tinha tudo ao meu dispor, comida, tanta coisa. E agora, sentada nessa cama, com quase 20 anos, tendo que trancar meu curso pela ideia humanitária maluca do meu pai, indo aos cultos na base dos Guerreiros de Deus, acompanhando a missionária Giovana Canhoni nas visitas que faz, nada mais faz sentido.
Acordo todos os dias, com os pés na areia, comendo comidas completamente esquisitas, que pra eles é um manjar, tendo diarreia com frequência por causa das comidas novas, acordando mais cedo do que fazia, vestindo-me com roupas multicoloridas, ouvindo louvores estranhos, vendo aquelas crianças, jovens e adultos chegando adoentados para cuidarmos, tendo de dar colo há 4 a 5 crianças a cada minuto, mesmo sendo bem recebida e amada e acompanhando essa rotina, eu sorrio, mas tudo que mostro aos outros, só carrego comigo até o momento que fecho as portas do meu quarto e enfim estou sozinha. Minha raiva de tudo e de todos, e até de Deus, vem quando estou a sós, quando finalmente posso ser eu mesma.
Mesmo fingindo, a "Gi", como chamo a esposa daquele pastor que ajudamos, que todos aqui estimam, e eu mais ainda, ela sempre percebe que há algo errado em mim, porém na maioria das vezes, eu digo que a culpa é do calor e das condições novas, o que não deixa de ser, mas nunca digo a ninguém o quanto sinto raiva por meu pai ter nos tirado do Brasil pra nos enfiar nessa "Mini Saara". Minha mãe quando ele deu a ideia, sorriu e disse que tudo bem, mas eu e meu irmão, ficamos irritados quase que todo o processo de mudança. Se o "Xandy" era um louco da fé, meu pai mais ainda, porque sinceramente, não vejo motivo para estarmos aqui. Diferente de nós, a família Canhoni tem vários anos naquele país, mas nós?? Meu pai sorri quase o tempo todo, puxa assunto, mas eu o ignoro a maior parte do tempo.
Meu irmão, Gustavo, quando viu os meninos novos e pode ensinar-lhes futebol, começou a se animar com a nova aventura, mas eu odeio isso tudo. Cada minuto me lembra o curso que abri mão e a vida que abri mão. Poderia ter orado com o Marcelo, e é claro que tínhamos um futuro juntos, eu cantando e ele tocando para Deus, e minhas amigas? Analis e Débora? Choraram desde o dia que dei a notícia, até o dia em que eu peguei o avião. Quando "Xandy e Gi" chegaram com aquele carro velho, mas abarrotado de crianças, tudo que eu queria era pegar o próximo vôo pra minha terra e ir embora dali. Mas agora, aquela era minha nova casa.