a part of you with me

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Era um pesadelo. Só podia ser um pesadelo. Não podia ser verdade.

Celina, com a expressão transtornada, os olhos chispando de fúria e loucura, estava diante de Flávia e Guilherme, tendo nas mãos trêmulas uma arma apontada para o casal, que a encarava entre o pânico e o desespero. Antes tão sensata e equilibrada, a psique da psicanalista foi corroída pelo transtorno obsessivo-compulsivo, de quem seu único filho era o principal alvo. Ver Guilherme se libertando, vivendo a vida e tomando decisões sem a influência dela, foi demais para Celina, que perdeu os poucos laços que a prendiam à sanidade quando Guilherme mencionou a possibilidade de comprar um apartamento para morar com a esposa e a filha a nascer.

Literalmente louca para recuperar sua influência sobre o filho, Celina recorreu ao crime. Aliou-se a Cora e Tucão, visando exterminar da vida de Guilherme a pessoa que, aos olhos dela, era a única responsável pela dissolução de sua relação com o médico: Flávia que, a essa altura, estava grávida de oito meses.

Era por causa dessa aliança macabra que Flávia, Guilherme, Neném e Paula estavam no Pulp Fiction. Mais cedo, Cora e Tucão haviam sequestrado a gestante de dentro da Clínica Monteiro Bragança, onde Flávia estava com a mãe, o marido e o amigo passando por mais uma consulta de pré-natal, e a levado para a boate a fim de entregá-la à mãe do doutor. Só não contavam que o médico, o jogador e a empresária os perseguissem até o local, rapidamente sendo atendidos pela polícia, que rodeara a boate a fim de evitar alguma desgraça.

– Mãe – Guilherme implorou, desesperado – Não faz isso, pelo amor de Deus. A Flávia tá grávida, é uma menina. Eu sempre quis ter uma filha, lembra? A gente sempre falou sobre como eu seria um maravilhoso pai de menina, e agora eu vou ser. A senhora finalmente vai ter a sua neta, mãe. Não faz isso, abaixa essa arma, vamos conversar.

– Isso se for sua filha, né, Guilherme? Você já caiu num golpe desses antes, lembra? Com a Rose? – Disse a psicanalista, venenosa – E pelo menos a Rose sabia de quem era o bastardo dela. Essa aí não deve nem saber quem botou essa criança na barriga dela e tá te empurrando o fardo.

– Lembro, mãe – Guilherme deu um passo na direção da mãe, cauteloso – Mas é diferente com a Flávia. Eu tenho certeza que a minha filha é mesmo minha. E a Flávia não é a Rose. Ela me ama de verdade. E a gente quer muito você na vida da nossa filha, não é, Flávia? – Ele olhou rapidamente para a esposa que, trêmula, assentiu freneticamente, incapaz de dizer qualquer coisa por medo de que a sogra surtasse de vez.

– NÃO! – Celina gritou – Eu quero muito voltar pra vida do meu filho, mas com essa delinquente e a bastardinha dela não.

A mão de Celina firmou-se no gatilho e ela disparou.

Flávia acordou aos gritos, o rosto encharcado de lágrimas. Instintivamente, estendeu a mão e tocou o espaço vazio e frio ao seu lado na cama do casal. Olhou ao redor, desesperada, e por um segundo quase pôde ouvir o barulho do chuveiro, a voz rica e quente de Guilherme ecoando nas paredes azulejadas enquanto ele cantarolava durante o banho. Ainda na época da troca, Guilherme tinha dito que não podia se apresentar com a banda porque não sabia cantar, mas isso não era verdade. Ele tinha uma bela voz grave, que combinava perfeitamente com a MPB que ele preferia, e em várias manhãs Flávia sonhava que acordava com Guilherme cantando debaixo do chuveiro, a filha deles dormindo esparramada na cama ao seu lado, cuidadosamente protegida por uma parede de travesseiros.

Mas isso nunca aconteceria.

Porque Guilherme não estava mais lá.

Ele tinha sido escolhido pela Morte, e levado pela mão da própria mãe.

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