O Menino Azul

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Se eu emergir,
vou turvar minha remissão,
única lavra deste silêncio.

Quando tocou Felipe, sentiu-o pulsar entre os dedos. Ele se virou e elevou o quadril, tentando parecer mais ereto do que nunca fora. No entanto, assim que ele abriu os olhos, sorriu amarelo, levantou-se e foi até o banheiro.

Eulalia jogou um travesseiro sobre o rosto e se fantasiou de lençol, escondendo o rubor, pela segunda vez naquela semana.

Espiou-o por trás do tecido e ficou ouvindo o ruído da urina, imaginando-o sobre ela, beijando-a quente como era antes da gravidez. Contudo, o marido sentou no vaso e abriu uma das dezenas de revistas Mad, que proliferavam no banheiro.

Passou a mão pela barriga, sentindo o umbigo se esticando e deduziu que não devia estar muito sexy. Pensou em esperá-lo para se atirar sobre ele. Preferiu sussurrar baixinho para Jano, que lhe chutara a barriga.

─ Seu pai está com ciúmes de você.

Levantou-se e foi preparar o café.

Ovos mexidos eram o desjejum preferido deles desde quando se casaram, há sete anos. Enquanto quebrava os ovos, lembrou do aborto. Foi no primeiro ano de casada. O casamento nunca mais fora o mesmo e, naquele momento, estava indo de mal a pior, concluiu, enquanto a frigideira estalava.

Avisou que tinha salão à tarde. Ele não disse nada, apenas mastigou os ovos mexidos e deu um gole no café. Eulalia tentava encontrar o amor, ali dentro, atrás daquela barba, que adorava quando roçava sua nuca.

Teve vontade de perguntar onde andaria aquele tesão todo que antigamente o fazia procurá-la a qualquer hora. Não ousou arriscar. Tinha receio da resposta.

À tarde, quando saiu, Felipe nem se levantou para o beijo de despedida. Beijou-a de lado, olhando a tela do Monkey Donkey, enquanto o 3x1 preto e cinza tocava Take On me, do Aha.

No caminho, lembrou do tempo em que as competições de mergulho livre eram sua única preocupação. A apneia tinha sido a responsável por fazer Felipe se apaixonar por ela. Sempre acreditara naquilo.

Quando chegou ao salão, encontrou a porta fechada. Na porta, um papel colado, entre faixas listradas de amarelo e preto, tinha uma palavra em destaque: LACRADO.

Caminhou de volta outros vinte minutos. A tarde estava quente e ela suava, olhando para as unhas sem esmalte, as cutículas aflorando esbranquiçadas. Pensou em ir até a casa da manicure, mas desistiu.

Excitada, deduziu que Felipe estaria com tesão à tarde.

Ao se aproximar da porta, ouviu:

Listen to your heart, when he's calling for you.

Listen to your heart, there's nothing else you can do...

Ela amava aquela música. A voz de Roxette era demais.

Quando entrou, apenas Monkey Donkey pulava na tela, pedindo atenção.

Atravessou a sala e parou a meio caminho. A porta do quarto, entreaberta, emanava sussurros maliciosos pelo corredor estreito.

Tirou os sapatos e atravessou aqueles dois metros sentindo seu corpo drenado de tudo. A visão a fez se encolher no corredor, uivando, como se estivesse parindo naquele mesmo instante.

Não viu Sofia sair do quarto. Quando Felipe a pegou no colo e a fez sentar no banco do carro, ela já tinha desaparecido.

Não pariu, apenas sentiu a felicidade a abandonar pela segunda vez naquele dia.

Deitada no hospital, perguntava-se por que Deus a estava culpando? Não era ela a vítima? Não merecia perder outro filho.

Chorou a dor da perda durante o final de semana inteiro. Quando voltou para casa, trancou-se no quarto. Sua solidão estava acompanhada pela música do game Monkey Donkey, denunciando a fase dos barris de madeira. Ela adorava aquele jogo. E era melhor que ele na fase dos barris.

Acordou de madrugada, enfiou as roupas dele em quatro sacos de lixo e os largou na porta. Ligou o MSX e começou a jogar Monkey Donkey.

Quando ele acordou, nem se virou para vê-lo sair. Depois, foi visitar os pais, sentindo-se culpada por não ter ido até a casa da manicure. Amaldiçoava-se por ter flagrado Sofia cavalgando Felipe. A cena dos dois suando na sua cama, não a largava. Nem a dúvida de como Sofia saíra sem ser vista.

Na sexta, dormiu na sala. Não suportaria acordar naquela cama num sábado. O cheiro de Sofia continuava impregnando tudo. Mesmo depois de todo tipo de produto para desinfetar aquele quarto.

Voltou às aulas de mergulho. Acordou às seis da manhã e enfrentou nove duras horas treinando crianças burras demais para aprender algo simples.

A dor era demais para seus dias. Matar Felipe e Sofia seria uma opção. Chegara a pensar em esfaqueá-los, mas desistiu. Preferiu dar uma bofetada num menino que também se chamava Felipe.

À noite, em casa, chorou três horas seguidas. Morrera para o mundo, enquanto Jano tinha sua ausência cada vez mais impregnada em cada objeto que tocava.

O trabalho fora relegado ao segundo plano, o choro vinha na frente de qualquer outra atividade. Jano era a semente do futuro, mas ele também a tinha abandonado.

Acordou antes do sol, disposta a fazer-se feliz. Dirigiu calada até o trabalho apertando o volante para evitar que as grossas lágrimas despencassem. Procurou Demerval, o chefe, e jurou jamais fazer aquilo novamente. Prometeu ser a mais entusiasmada instrutora que o menino Felipe jamais teve. Prometeu voltar a treinar. Havia um campeonato a ser vencido.

A primeira imersão depois de Jano a deixar, foi uma epifania. Esperava encontrar a dor ou o fruto da discórdia, mas nada foi como antes. Naqueles poucos instantes, todas as suas preocupações desapareceram. Era apenas ela, Deus e um zunido acolhedor. Um tranquilo momento para observar seu eu interior. Dizer a si o quanto suas próprias decisões a decepcionaram. O quanto se arrependera de ter voltado para casa naquela tarde.

Poderia ter sido a remissora, engolido aquela falha. Jano ainda estaria com ela, se tivesse sido um pouco condescendente. Ela mesma expulsara o filho de dentro de si, o ódio fez aquilo. Por isso, vivia um tempo para se punir por tudo, mas também de se libertar de tudo e de todos.

A piscina onde treinava tinha um poço de 40 metros de profundidade. Ali, os maiores mergulhadores do país davam o melhor de si para competirem nos principais campeonatos de apneia.

Ser abraçada por toda aquela água, era tudo que pedira a Deus. Mas a sua condição psicológica não lhe permitia fôlego suficiente. O máximo que conseguiu, foram menos de três minutos naquele zunido hospitaleiro.

Na segunda tentativa, ultrapassou a marca de quatro minutos.

A 25 metros de profundidade, teve outra epifania. Ao se preparar para emergir, sentiu algo tocando seu pé esquerdo.

Ao olhar para baixo, viu duas mãozinhas azuis tocando seus calcanhares.

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Contos são assim, abruptos e revelam apenas o que está na superfície da narrativa.

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⏰ Última atualização: Jul 05, 2022 ⏰

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