Sinto como se o frio de mil invernos trocasse de lugar com o calor do quarto em apenas uma gargalhada. Aura se volta para mim, seu bafo de gelo ainda incomodando minhas mãos enquanto tranço seus cabelos ofuscantemente brancos. Ela ri do fato de ainda poder dar gargalhadas depois de milênios de piadas bobas.“É um segredinho meu” é o que eu digo aos nobres de toda Éteria. Você tem que ir com os que tem poucos milhares de anos, esses são os mais fáceis, e imaginar as coisas mais absurdas que alguém poderia dizer. Nem sempre funcionava, mas quando dava certo era a risada de um imortal que você ganhava, e nas castas mais altas da sociedade não havia nada mais valioso.
— Eu não sei como você ainda consegue fazer isso, Olímpia!
— Com uma bobinha que nem você, não é difícil. — Sinto o gosto de bile. Chamar de bobinha foi arriscado demais, mas Aura retribuí com um sorriso para o meu alívio.
A noite se arrasta entre vinhos, piadas bobas e fofocas da corte. A deusa do inverno é uma boa companhia, mas sinto o cansaço de um dia cheio de trabalho caindo sobre meu corpo mortal. Já ela, como sempre, insistindo em continuar igual uma criança em busca de atenção.
Guardo os pentes e a levo até a porta depois de muito recusar e insistir no meu próprio cansaço. Aqueles pesados olhos violetas de Mági se abaixam numa pena que já cansei de ver. Me preparo para agir como a nobre responsável e acolhedora que devo ser, mas tal nobreza nunca me caiu tão bem. “Uma vez uma menina das vielas, sempre uma menina das vielas.”, Exu sempre faz questão de me lembrar, não pelos motivos que eu gostaria.
— Olímpia… — Ela para diante da porta, os olhos profundos me encarando. Sei que é uma deusa, mas poderia se passar por minha irmã mais nova, uma criança. Maldito seja O Supremo.
Antes que possa dar boa noite sinto o seu abraço, este, quente e aconchegante.
— Não é justo.
Isso de novo, não.
— Senhora Aura, já está tarde.
Ela não solta.
— Por que somos assim, Olímpia? Por que uns de nós tem que viver para sempre e os outros tão pouco? Por que você tem que morrer tão nova?
Viver mais de trinta anos nas vielas da cidade mais baixa já era sorte. Minha mãe falava em chegar aos quarenta e cinco ou cinquenta, e achava estar velha. Os nobres com quem me enturmei nos últimos doze anos dobram essa estimativa de idade e eu talvez chegue lá, mas essa garota tem apenas o infinito como medida. Para ela não devo ser mais do que um animalzinho de estimação que logo morrerá.
Com o tempo aprendi a lidar com o medo de ser morta por algo tão fútil quanto contar uma piada idiota, a se portar com classe diante de reis e deuses, a se tornar a mulher a colocar juízo nas cabeças de governantes mimados. Toda uma infância criada e ensinada a odiar os imortais e sua mão de ferro, mas aqui estou abraçada com uma deusa e consolando-a por sua “tristeza” de me ver morrer algum dia. Mamãe me chamaria de louca. Mas uma louca com uma vida boa, isso sim.
Ouço os desabafos dela desde o pesado dever de reger a estação de um dos sete reinos até a dor e medo de me ver morrer. Quantos mais não já teria visto? Ainda era jovem, iria encontrar outra confidente, e outra, e outra. Talvez essa juventude que permitiu a sua aproximação com uma simples diplomata.
O que mais alguns milhares ou dezenas de milhares de anos farão com essa menina, eu não quero pensar. Se tornará as pedras vazias e calculista dos mais velhos, ou alguém tão maluca e inconsequente quanto Loki e Saga ? Gosto da última opção, assim pelo menos teria mais contato com mortais. Mas não importa, no final não estarei aqui para descobrir. Agora o medo imediato de ser congelada até a morte por dizer algo errado é o que me preocupa.
Respiro fundo. Palavras simples e que não denotem comportamento agressivo. Essa tensão está me matando.
— Minha Senhora, tenho certeza que você achará a resposta em toda a sua sabedoria.
Um movimento brusco, mãos geladas envolvem meu rosto.
Já ouvi histórias demais sobre ela para saber o que está vindo. Pelos séculos, nobres transformados em estátuas de gelo por uma ou duas palavras futilmente ditas. Eu sabia, doze anos foram tempo o bastante, foi prazeroso enquanto durou. Mas pelo menos poderia ser com alguma tentativa de piada idiota e não algo tão formal. Que humilhante. Fecho meus olhos esperando pelo frio de mil invernos.
— Eu não vou te deixar morrer.
Abro os olhos, ela me lança um sorriso calmo, quase melancólico. O gelo nas minhas bochechas faz meus dentes tremerem.— Senhora Aura… — Procuro, mas o ar me escapa. Não sei se pelo frio, o medo ou o que ela disse em seguida.
— Esse medo que sente, esse pavor. Não vai mais sentir ele nunca mais. Eu prometo pra você que não vou deixar que morra. — Ela toma um longo suspiro. — Olímpia, somos amigas, não somos?
Nem em mil vidas. Uma tutora talvez, mas todos tem que fazer o próprio trabalho pra sobreviver.
— Sim, claro. — Digo — Somos amigas, Senhora Aura.
Seus olhos se enchem de lágrimas congeladas e ela me dá um último abraço.— Obrigada, Olímpia. Obrigada de verdade.
Me esforço o bastante para esboçar um sorriso torto antes dela fechar a porta e levar o frio junto.
Um longo suspiro escapa, suor começa a escorrer da minha testa e minhas pernas já não tem mais força. O chão vem de encontro ao meu corpo e encontro apoio na porta, agora feliz de poder sentir o mínimo calor. Maldita seja Aura. Malditos sejam todos eles. Esse trabalho precisa de um aumento.
A maciez da cama me lembra o motivo de estar aqui. Abraço o travesseiro, sentindo seu conforto como a primeira vez que pude deitar em uma cama só minha. Minha mente vaga pelas memórias das vielas, de dividir metade de um colchão com mamãe, das suas histórias.
Um baque à porta e meus olhos se abrem, a visão ainda turva. Acordo para a realidade dos deveres que caem sobre minhas costas para poder desfrutar daquela confortável cama. Mais um problema para a conselheira Olímpia resolver no meio da madrugada, é claro. Ninguém pode ter uma noite de sono em paz nesse palácio.
— Eu já vou!
Mais algumas batidas e a porta teria sido derrubada. Mal consigo vestir um roupão antes de abri-la e dar de cara com o apressadinho.
— Deixa eu vestir alguma coisa, seu...
— Senhora Olímpia, é urgente!
— Seja lá que besteira o menino do trono fez, tenho certeza que pode esperar.
— É a Senhora Aura!
Passos apressados pelos corredores se acentuam, criadas correm aos gritos. Guardas tentam conter o desespero, mas poucos são aqueles que não se juntam à confusão pelos corredores avançando para o salão principal.
— Onde ela está?
O rapaz me responde com não mais que três palavras vazias:
— Aura está morta.
.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Crônicas de Etéria
FantasíaContos e lendas da terra onde mitos são reais e deuses andam ao lado de mortais.