Fértil (1352 palavras)

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- Éder! - batida na parede. Oca.

- Acorda, Éder! - outra.

Imagens confusas, embaçadas de uma rua movimentada se mesclavam ao lusco-fusco do quarto escuro, um ambiente familiar. Tão familiar quanto morto. E no entanto... a voz também era morta. Uma voz grave, esganiçada pela idade, uma voz que não ouvia há dez anos, mesmo nos seus sonhos. Voz de defunto. Abriu completamente os olhos. Fixou-se no teto lajeado, escuro, cortado em tiras pelo sol de manhã, que invadia o quarto pelas frestas da janela fechada, de alumínio, recém instalada. Conhecia a voz, o quarto, mas... não era possível.

Levantou-se com cuidado, se apoiando nos braços, estranhamente finos, um corpo mais esguio, um rosto, agora que o sentia com uma das mãos, mais macio e imberbe, uma barba ainda não nascida. Levantou-se, atrasado, destrambelhado, seguindo a gritaria estridente ao longe, de uma voz tão amada, tão querida e irremediavelmente perdida. Encontrou os outros óculos, de uma época passada, de um tempo desperdiçado, e imensamente largo. Colocou-os e não teve dúvida. A morte lhe pregara uma peça. Jogado ao velho piso, estava seu relógio, lhe indicando que eram oito horas da manhã, quando, há poucos minutos atrás, outro relógio indicava que eram cinco da tarde. E aquele ali, no chão... era um relógio de outro mundo, que não pertencia mais à sua vida.

Tateou pelas paredes do quarto, o mesmo, não mais abandonado pela morte e pela inércia de herdeiros famintos, parte de uma casa viva e ruidosa, com o barulho da cozinha, da panela de pressão a chiar, dos passos de chinelas, amados e perdidos, do sol que invadia o quarto da sua avó, com seus santos, seus terços, rosários, fichas de igrejas e velas ardendo, sob o sol das oito da manhã. A imagem de Nossa Senhora da Conceição, de madeira, do século XV, uma herança de família legada pela bisavô, ali estava, alta, austera, com um olhar cheio de doçura e compaixão, em formas e tecidos voluptuosamente esculpidos pela inteligência artística do Barroco, outra época morta. Outros santos, menos impressionantes, o observavam, como o busto do Sagrado Coração, Nossa Senhora Aparecida, Santa Edwiges. Tudo no mesmo lugar, o mesmo rack. O mesmo santuário de uma infância perdida, o altar das suas primeiras aulas de religião, de imensa curiosidade infantil, de aprendizado lento e imaginativo. À sua esquerda, rente à cama dela, grande, do casal que ele não chegou a ver juntos, uma frágil escrivaninha com escaninhos de pisos, estavam as Bíblias dela, os textos sagrados de outra época ainda mais morta. Alithos anesti. O jornalzinho do bairro mostrava a data de 9 de setembro de 2003, jogado sobre um dos pisos.

Precisou respirar fundo, se concentrar nas batidas do seu coração, agora parecendo menos frágil, para enfrentar, no meio do corredor iluminado pelo mesmo Sol ardente, a figura não muito alta, mas forte, imponente, de sua avó: "Anda, menino, senta pra comer, que tenho teu almoço ainda pra preparar. Tu tem que comer cedo pra ficar pronto pra perua." Disse, do fogão, mal olhando pra ele.

- Q-que dia é hoje...? - balbuciou, tentando reprimir as lágrimas.

- Não sabe? - resmungou a velha mulher. - Nem parece que estuda tanto, hoje é terça-feira.

Disso ele sabia, pode ver no jornal, mas a coincidência...

- Como é que v... - tentou dizer, mas não aguentou, se jogou nela, abraçando-a por trás, soluçando inaudivelmente e reprimindo a dor e a alegria que sentia, e cada suspiro engolido era como uma faca a lhe atravessar o coração. Ela não entendeu, o afastou com a mão livre e o mandou novamente ir logo pro chuveiro. "Menino esquisito", mas ria por dentro, satisfeita.

Entrou no mesmo banheiro, recém-reformado naquele tempo, tirou as roupas e tomou seu banho, aproveitando para olhar para o corpo, novo e jovem, com menos pelos, um cabelo mais ralo e totalmente preto, mãos pequenas e uma barriga menor. Acariciou seu corpo, cada parte, só para saber se aquilo era real, como se se beliscasse, e entendeu, refletiu. 

[...]

Há até poucos minutos atrás, era 9 de setembro de 2013, uma segunda feira em que levantara cedo, saíra para seu primeiro dia de trabalho em um novo escritório na cidade vizinha. Foi estranhamente nostálgico ver que uma colega sua do ensino médio era uma espécie de chefe de setor ali, nostálgico e deprimente, conforme a excitação e baixa autoestima ia alternando o governo de sua mente. Ademais, fora um dia típico de se abastecer de aprendizados soltos de pessoas desconhecidas para iniciar sua integração à rotina de trabalho. Um dia de muitas impressões novas, medos e desconfianças, mas de excitação e curiosidade, e algum nervosismo. Na hora do almoço, seus nervos estavam à flor da pele, situação que remediou com um prato imenso de panquecas, muito mais do que podia comer só porque ainda não conhecia a região e era tímido demais para pegar carona com as colegas de trabalho. Eram todas mulheres, o que dificultava a situação.

Saía de um emprego de mais de 4 anos onde fazia as mesmas coisas sempre, comia no mesmo lugar, via (e suportava) as mesmas pessoas, e não havia perspectiva de crescimento, até que essa oportunidade apareceu. Não era muito melhor, mas era alguma coisa, uma novidade, um lugar onde podia aprender alguma coisa e continuar adiando a graduação que queria fazer. Também era uma forma de se desvencilhar mais um pouco da cidade da sua infância, agora livre do encantamento em que sua avó a mantinha simplesmente por existir no mundo: ela morrera no ano anterior, um infarto que ninguém esperava em um quadro clínico completamente diferente de cardiopatia. Era uma forma de movimentar a vida à força, quando a força real faltava dentro dele, especialmente quando Deus lhe tirara a avó. Nesses momentos pensava nela, e pensava no rosto moreno de olhos e cabelos negros, de maçãs coradas que abandonara na adolescência. Lembrava da sua covardia habitual em afirmar seus próprios desejos e lutar pelo que amava, e como a avó se ressentia disso. Lembrava de palestras trocadas em movimento, à luz do sol crepuscular, de uma rotina constante de alegrias secretas, e sentimentos inconfessados, e agradecia a Deus por poder amar em silêncio. Era melhor que nunca ter amado. Pensava nisso, e no que mais poderia ainda lhe ser tirado quando, cheio e cansado, atravessava a rua para voltar ao escritório, sem perceber que um caminhão-tanque se descontrolava, e lhe caía sobre os olhos um inferno de chamas, pulsão de ar e uma rua indo para o espaço. Aí acordara...

Ou morrera? Se isso fosse morrer, não era tão ruim assim, considerando que não sentira nada e que outra vida, muito mais plena, muito mais larga, se reiniciara para ele. Não a vida nova, que sonhara, mas uma antiga. E poderia morrer mil vezes ainda, no mesmo momento, ter seu futuro arrancado de si, que ainda valeria a pena, pensava, quando, já arrumado, tendo almoçado a comida boa e feita sem amor pela avó, após beijos de despedida usuais, subia na van escolar. Valia morrer naquele momento, sem esperança, sem futuro, sem fé alguma que a vida fosse render e permanecer larga. Daria tudo por essa vida antiga, novamente. Deu, quando foi engolido por chamas inesperadas. Queria consertar tudo, criar um novo futuro, mas acima de tudo, queria ver de novo... 

O sorriso metálico, as costas encurvadas pelo peso da mochila, cabelos negros amarrados de forma despretensiosa e austera, pele macia e morena, olhos brilhantes. Ele morreria quantas vezes fosse necessário por aquele instante de eternidade, por ser fulminado novamente pelos olhos que riem, pela alegria transbordante, o poder arrasador, a certeza de triunfo dos olhos pequenos que riam e expressavam mais do que qualquer sorriso. Será possível? Ele, que julgara perdida a melhor parte da sua vida, ganhara ainda preciosos anos, a possibilidade de consertar os erros de palavras impensadas e ásperas, o pecado do abandono de si e da própria felicidade, e o melhor: ganhar, novamente, a chance, sua última chance de ser feliz. Feliz e fértil. Esperançoso e sem medo. Forte e certo do que significava amar. Alithos anesti.

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