Já era 5 da manhã, e eu sentia que minha cabeça ia explodir. Em Chicago quase não fazia calor, mas hoje estava, demais. Rolei na cama e evitei por alguns minutos o fato de que havia dado a hora de levantar. Me sentei na cama, olhei no celular, nenhuma mensagem. Engraçado é que eu nunca havia ligado pro tipo de atenção que as pessoas me davam, e coisas desse tipo, mas agora era diferente. A minha vida estava uma completa bagunça, e eu não sabia por onde começar, ou terminar, sei lá. Realmente estava sem rumo e a única pessoa a qual eu poderia pedir socorro era a minha mãe, que quase nunca estava interessada em saber o quanto eu estava depressiva e/ou sendo desprezada pelo resto do mundo. Depois de ir ao banheiro e ficar me olhando algum tempo no espelho, percebi que estava com uma aparência tão ruim, que decidi que não sairia de casa naquele dia, não, de jeito nenhum. Abortar a missão, voltar pra cama, colocar os fones de ouvido e sonhar com uma vida mais agradável e menos complexa.
De repente ouvi um barulho, não, aquele não era um barulho comum. Foi um estrondo tão estrondoso que eu dei um salto na cama e fiquei paralisada, imóvel. Segundos depois de quase infartar, me levantei e fui até a janela. Olhei pros lados, e não vi absolutamente nada. Me inclinei um pouco e olhei pra baixo e vi, uma garota quase arrancando os cabelos e gritando muito alto coisas como "Droga, eu vou passar a minha vida pagando o conserto dessa coisa" "Pior dia, hoje é o pior dia da minha vida."
Ah, e tinha um carro também, ou oque havia restado dele. Decidi ir ver de perto oque havia acontecido porque 1- Aquela garota parecia realmente desesperada. 2- Eu ia ter que levantar da cama uma hora, e essa hora poderia ser agora, tudo bem. E 3- Havia algo de diferente acontecendo e eu, não sabia como explicar.
Coloquei uma calça, calcei os chinelos e sai correndo, literalmente correndo, até a calçada. Me deparei com a garota falando ao celular (tentando eu acho). Ela era morena, tinha cabelos negros, que passavam dos ombros. Vestia uma camisa preta com algumas palavras escritas em frances, um shorts azul meio desgastado, all star branco e carregava uma mochila que estava transbordando coisas.
Me aproximei com cautela, estava nervosa, um pouco nervosa.
- É... Oi. Meu nome é Samantha, mas me chame de Sam.
- Oi.. Não me leve a mal, eu to bastante ferrada aqui e.. Desculpa, meu nome é Alyssa, mas prefiro Aly.
-Não, ta tudo bem. Eu moro naquela casa alí. Ouvi o barulho, e.. Bom.. Você quer ajuda?
- Nem esquenta, eu me viro. Obrigada. Samantha, né? Nome bonito.
- Obrigada... Então, vou indo, se precisar, estarei bem alí. Até logo.
Voltei pra casa, me sentei no sofá e cochilei, acho que até sonhei mas não sei ao certo, só sei que acordei rindo e isso foi bem estranho.
Depois de alguns minutos a campainha tocou e eu fui atender. Era a Alyssa.
- Desculpa incomodar.. Eu queria saber se posso usar o seu telefone, por favor.
- Pode.. Ele está lá em cima, entra..
- Com licença.
Ela estava nervosa, suas mãos tremiam e a cada dois segundos ela dizia o quanto estava ferrada. Fomos até o meu quarto, peguei o celular e entreguei a ela. Ainda trêmula, discou um número, uma, duas, tres vezes. Nada. Seja lá quem fosse a pessoa a quem ela estava ligando, parecia que estava ocupada, muito, definitivamente, ocupada.
- Minha mãe.. Ah cara, ela vai surtar. Não sei se choro ou se agradeço por ela não atender.
- Não tem outra pessoa? Um tio ou, sei lá.
- Só tenho ela, e, bem, já to acostumada com esse tipo de coisa. Ela parece estar sempre ocupada, se preocupando com coisas muito importantes e eu não.. Não sou uma dessas coisas.
- Olha, ta tudo bem. Essas coisas acontecem. A minha mãe trabalha tipo, umas 25 horas por dia e eu, quase não a vejo. Isso me chateia, as vezes. Mas aprendi a ignorar.
- É só que, eu não consigo ignorar, eu sou única que se importa com ela, sou tudo oque ela tem. Droga. Droga.
Naquele momento eu não sabia oque fazer, ela simplesmente começou a gritar e chorar, tanto. Aquilo doeu em mim. Sentada junto a minha cama, e com as mãos levadas ao rosto, ela soluçava e em meio as lágrimas dizia algumas palavras.
- Ela... Ela é tudo pra mim. E... Tem.. Sido. Dias... Muito dificeis. Meu.. Pai. Faleceu faz umas duas semanas e eu ainda sinto o cheiro horrível daquelas... Malditas flores.
Me sentei ao lado dela, e mantive meu olhar fixo em seus olhos, pequenos e um tanto vermelhos por causa do choro.
A puxei pra perto, e a abracei, forte. O choro cessou. E nenhuma das duas pronunciou uma só palavra.
Eu não sabia oque dizer, não sabia como agir. Ela estava tão frágil. Eu podia sentir seu coração palpitar. Então ela virou pro lado, e ficou com os olhos quase fechados. Parecia estar mais calma. Eu realmente desejei que ela estivesse mais calma.
- Me desculpa por isso.. Você nem ao menos me conhece eu...
- Shhh... Não se desculpe. Ta tudo bem. Você mora perto daqui?
- Não exatamente.
- E isso quer dizer que é longe?
- Talvez..
- Oque fazia por aqui?
- Estava fugindo.
- Fugindo, do que?
- Dos problemas, de tudo.
Ela abaixou a cabeça e as lágrimas vieram, de novo. E de novo.
- Por favor.. Não, não chora. Eu vou te ajudar. No momento não sei bem oque fazer mais, eu vou te ajudar. Só fica calma.
- Obrigada Sam, muito, obrigada.
Ela foi até o banheiro, limpou o rosto e então voltamos para a cena do crime. Que estava do mesmo jeito. Um carro, um poste, uma garota calma, agora, e com todos os cabelos intactos na cabeça.
- Foi uma bela de um batida, não? mamãe vai adorar. Mas antes que ela saiba, precisamos arrancar esse troço daqui.
- Sim... Pense pelo lado bom, agora você tem uma sanfona.
Ela riu, eu paralisei. Eu já tinha visto sorrisos bonitos, mas nenhum, se comparava ao sorriso dela. Nenhum me fizera congelar e sentir mil borboletas explodindo no meu estômago de uma só vez.
Ficamos uns 20 minutos esperando o guincho vir buscar o carro, e depois voltamos pra minha casa.
Já passava das 6 da tarde, e logo logo iria anoitecer. Pensei comigo.. Não vou deixar ela ir embora assim. Hoje foi um dia ruim, amanhã ela encara isso. Essa noite ela fica aqui. Ela fica.
Eu deitada na cama, ela sentada no tapete, cantarolando uma música que eu nunca havia ouvido. A voz dela era tão linda como os olhos, como a boca e as mãos pequeninas. As unhas pintadas de preto, já um pouco descascado e pequenas cicatrizes lhe percorriam o pulso. Me sentei na cama, a encarei.
- Quer passar a noite aqui? Tipo.. Você não precisa ir embora, se não quiser.
- Não... tenho que ir.
- Não queria fugir?
- Sim mas..
- Aqui pode ser seu esconderijo. Não precisa ir, mesmo.
- Mas e a sua mãe?
- Nem esquenta, ela ta viajando.
- Então eu acho que, tudo bem, só hoje..
Depois de tê-la convencido, fomos pra cozinha fazer um lanche. Ela me contou oque fazia, oque gostava, e eu só concordava, falava algumas coisas sobre mim, e assim foi por mais de uma hora.
Fomos pra sala, coloquei um filme. Ela sentou do meu lado, com as pernas cruzadas, e eu toda largada, a diferença era um pouco notável.
Passados 20 minutos de filme, ela havia caído no sono. Tava cansada, sobrecarregada, deixei ela dormir um pouco. Subi pro meu quarto, arrumei a cama pra ela, e coloquei um colchão no chão pra mim.
Voltei pra sala, me aproximei o mais cautelosa possível.
- Ei.. Alyssa.. Ei.. Vai dormir no quarto, arrumei a cama pra ti.
- Poxa, eu dormi? Mesmo? Me desculpa.
- Dormiu sim, mas relaxa..
Fui até o quarto com ela. Ela se deitou, mas ficou com os olhos abertos, encarando o nada.
Eu achei que fosse vergonha de mim ou sei lá, então voltei pra sala. Passado alguns minutos ouço ela chamar.
- Samantha!
O grito ecoou pela casa inteira.
Sai correndo em direção ao quarto e quando cheguei lá ela estava sentada na cama.
- Oque houve Aly? Tu me deu um susto.
- Me desculpa, não é nada de importante eu só queria pedir.. ahh, deixa pra lá.
- Não, diz.
- Fica aqui, comigo.
Os olhos dela brilhavam. Eu imaginei como alguém podia deixar de lado uma garota tão doce, tão pequena, tão amável.
- Eu fico... Por quanto tempo quiser.
- Obrigada.
Ela se deitou, e ficou olhando pra mim, como se quisesse algo mas eu não sabia oque era. Então ela deu uma batidinha no colchão.
- Deita aqui.. um pouquinho.
Eu fiquei nervosa, mas não recusei. Um pouco desajeitada, me deitei ao lado dela. Meu corpo estremeceu, quando nossas mãos se tocaram.
Ela me olhou.
- Sam?
- Oi..
- Suas mãos estão frias.
- Você acha? As suas estão quentes.
- Acho que estão.
Fui sentindo a pequena mão de Aly se aproximando devagarinho. Ela foi caminhando por cada dedo, e me olhava, com aqueles olhos negros, vivos, me penetrando.
Nossas mãos se entrelaçaram, e eu senti, naquele instante. Que quando elas se soltassem, ia ser uma pancada, ia doer. Eu sabia que ia. Mas segurei a mão dela ainda mais forte. Assumiria esse risco. Ela foi fechando os olhos lentamente, e até fazia tentativas de permanecer acordada mas, em vão. Ela sorriu, e adormeceu..
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Com amor, Sam.
Romance"E doía, cada parte do meu corpo quando não estava junto do corpo dela. Sangrava por horas, dias, semanas. E a minha única forma de cura era sentir que ela estaria aqui, até a dor passar. Até o sol chegar."