O sol já estava para nascer enquanto Julia se arrumava para ir trabalhar. Uma calça jeans, uma camiseta branca, chegou a pegar um sapato na mão, chegou a pensar em usar algo diferente naquele dia, mas acabou usando o mesmo tênis baixo e confortável de sempre.
A loja ainda estava fechada. Ela sempre passava pelo mesmo caminho, o que significava uma olhada na fachada da loja onde já trabalhava há 3 anos antes de dobrar a esquina e encontrar a área de carga e descarga a todo vapor. Passou por um caminhão e o que parecia ser uma dezena de funcionários. Eram só quatro, na verdade.
Trocou sua roupa para o uniforme no banheiro dos funcionários. A maioria nem se dava a esse trabalho, já saía de casa vestida. Julia, entretanto, preferia assim. Talvez ela pensasse que não pertencesse àquela vida. Caminhou de cabeça baixa até a baia onde trabalhava entregando os produtos ao cliente depois do pagamento no caixa. Foi só sentada ali que se deu conta de que ainda não havia dado um bom dia sequer a outro ser humano.
A manhã toda foi repetitiva. Todos os dias eram repetitivos. Quando atendia alguém era simpática o suficiente para não correr risco de uma demissão, mas era só. Quando faltava apenas alguns minutos para o fim do turno, Julia já começava a olhar para a porta onde podia ler: “Somente funcionários”. Logo Camila sairia de lá. Era a única que fazia questão de cumprimentá-la e na maioria dos dias até encostava lá para trocar amenidades até o fim do expediente de Julia. Tinha esperança de que depois do Natal as duas fossem parar nos mesmos turnos.
Achava que teria sua primeira amiga.
— E aí? Como foi o movimento hoje? — Camila perguntou depois de se apoiar no balcão.
— Tranquilo. Acho que ainda falta alguns dias para a loucura de verdade.
— Claro né. A gente sempre deixa tudo para a última hora. Eu ainda não comprei presente para ninguém. Olha, nem sei o que comprar para os meus pais na verdade. — Camila disse com um sorriso no rosto. — Pro meu irmão então...
— Eu estou na mesma...
Julia tentou ser simpática com a resposta, mas era uma mentira absurda. Era filha única, o pai ela não via a mais de uma década e a mãe Julia nem sabia se veria no Natal. Era costume dela desaparecer perto dessas datas mais familiares e só reaparecer dias depois, sempre bêbada, algumas vezes com a mesma roupa com que saíra. Julia não sabia ao certo aonde ela ia e não tinha intenção nenhuma de perguntar. Era melhor não saber.
Camila ainda estava falando quando Julia percebeu que se distraíra para pensar nos próprios problemas. Era praticamente a única interação que ela teria com outro ser humano no dia todo e desperdiçara isso.
— Bom, já deu a sua hora. — Camila disse apontando para os outros funcionários do turno de Julia que já começavam a bater o ponto.
Julia fez de tudo para esconder que ela não queria ir. Sabia que era estranho não odiar o trabalho, por isso fingia sempre que necessário. O problema é que em casa era sempre pior.
Seu inferno começaria em breve.
Com a vida no automático Julia se sentia como se os pés a levassem sozinhos até onde ela precisava estar. Um esbarrão aqui e ali eram a única coisa que quebrava essa monotonia, também era um reforço do quanto ela era invisível. Esperou em pé no ponto de ônibus e foi a primeira a entrar. Sentou-se do lado de uma senhora simpática e colocou a mochila no colo. Um rapaz até bonito entrou só porque o motorista estava de bom humor. Ainda estava ofegante pela corrida de um quarteirão e pouco. Estava lotado então ele ficou na frente, o braço que segurava a barra para equilíbrio revelava uma tatuagem. Julia não se lembrava de ter visto aquilo antes. Era fã de cultura pop e tinhas duas tatuagens também. Se ela passasse por ele na hora de descer, ia perguntar.
No primeiro ponto mais pessoas desceram do que subiram, então ela se viu um pouco mais perto do homem. Agora já conseguia ver que ele deveria ter a mesma idade que ela, talvez até um pouco menos. Julia pensou que uma barba poderia ajudar um pouco a parecer mais velho.
Talvez tenha dormido porque se distraiu um pouco. Quando voltou a olhar em volta, o homem estava bem mais perto. Estava praticamente do lado dela. Subitamente tanto a pergunta sobre o personagem da tatuagem e a dica da barba sumiram de sua mente. Como diria algo assim para um estranho? Chegou a pensar que ser quase invisível não era uma coisa tão ruim. Poupava ela de passar por vários constrangimentos do dia a dia.
O motorista parou para mais uma leva de pessoas. O próximo ponto era o dela e tudo acabaria.
O homem estava no fim da fila dos que desceriam ali. Ninguém se importava, menos Julia. Ela viu a carteira caída no chão a centímetro dos pés dele. Ela a recolheu do chão e se virou para chamá-lo, mas ele já não estava mais lá. Num impulso se levantou para procurá-lo. Desceu, tentando ser rápida o suficiente para conseguir voltar antes que a porta se fechasse. Olhou ao redor, mas não o encontrou e ainda por cima viu o ônibus partir. Suspirou para aceitar que perderia no mínimo meia hora antes do próximo chegar. Foi se sentar no ponto já que não havia muita gente por perto e os lugares sobravam. Em alguns minutos não havia mais ninguém ali.
Já sabia que foi um erro descer. Não queria tirar o celular da mochila para ver exatamente onde estava. Era obviamente um bairro perigoso, por isso ninguém ficava. O desconforto foi tão grande que se levantou. Em pé tinha a impressão de que poderia fugir, se algo acontecesse.
— Oi!
Ela se virou para ver o home de antes. Ele estava perto... perto demais. Sentia algo frio pressionando a lateral da barriga. Desviou os olhos do rosto dele por apenas um segundo para ver que havia uma faca ali.
— Você vai andando na frente para onde eu mandar.
— Espera... — ela tentou argumentar algo, mas ele pressionou ainda mais a faca para impedi-la.
— Rápido! Ele não pode mais esperar...
Sem saber o que fazer, ela fez o que ele mandou.
O turno de Camila foi muito mais movimentado. Além disso, ela fora chamada para ajudar o fechar o caixa, o que ela aceitou sem pensar duas vezes. Poderia ser um bom indicativo de que uma promoção estava no horizonte. As vendas foram excelentes, todos teriam um generoso bônus naquele mês e Camila já estava pegando um agasalho que deixara pendurado. A temperatura sempre caia um pouco a noite, mesmo num dia quente como aquele. Naquele horário só estavam os funcionários de cargos mais altos, o que significava pessoas voltando para casa de carro. Camila era a única que precisava pegar o ônibus para voltar para casa.
Subiu sozinha, mas teve uma grata surpresa ao ver Julia em um dos bancos mais para o fundo.
— Dia cansativo? — perguntou o cobrador.
— Muito, mas está tudo bem. É melhor um dia cheio.
— Sem dúvida, dona Camila. — o cobrador tinha um sorriso simpático naquela e em todas as noites.
O motorista ela cumprimentou apenas com um aceno rápido para não tirar muito a atenção dele. Apesar da sobra de espaço, ela foi direto para se sentar com a amiga. Julia parecia distante, olhando para fora, para nada em especial. Camila acompanhou o olhar pela janela, mas não conseguiu encontrar nada que valesse tanta atenção.
— O que foi? Você deveria estar em casa há horas...
— Que bom que você veio.
— Você não parece muito bem.
— Só precisava de uma ajuda.
Camila notou que Julia desviava muito o olhar. Por vezes ela conseguia se concentrar na conversa, mas em vários momentos ela flutuava para dentro dos próprios pensamentos. O olhar se tornava distante de novo, quase vazio.
— Do que você precisa?
— Espera! Que horas são? Talvez seja tarde...
— São mais de onze da noite. Você passou todo esse tempo aqui?
— Tão tarde... — Julia lamentou.
— Julia, você passou esse tempo todo aqui?
— Não. — ela respondeu antes de pensar em como continuar. — Eu desci um ponto antes. Um cara perdeu a carteira e eu fui entregar...
Camila não tirava os olhos de Julia, prestava atenção em tudo e tentava juntar os pontos da narrativa errática que ouvia. Teve medo de que a mulher tivesse sofrido alguma violência.
— Eu só voltei aqui porque queria te encontrar. Precisava pedir ajuda. — Julia continuou.
— Claro. Eu ajudo. — Camila concordou, Não importava o que fosse, aquilo deveria ser muito sério.
— É Aqui. — Julia disse já se levantando. Camila deu uma olhada para fora para tentar se localizar. Tinha uma ideia vaga de onde estava, não conhecia bem aquele bairro justamente por saber que era violento. Todo mundo sempre evitava parar por lá. Um instinto freou Camila, algo dizia a ela para não fazer isso. Afastou o pensamento, deduziu que era apenas medo e que não poderia deixar a amiga precisando de ajuda. Levantou-se e foi atrás dela.
¬— Dona Camila? Esse ainda não é o seu ponto. — o cobrador alertou.
— Eu sei, mas ela precisa de ajuda.
— Quem?
— A minha amiga que acabou de descer. — Camila começou a se exaltar. — Ela precisa de ajuda agora.
— A senhora está bem? — era o motorista que agora já estava preocupado.
— Olha, eu sei que aqui é meio perigoso, mas eu não posso deixar ela assim. — Camila já perdera boa parte da paciência. — E vocês não vão fazer nada?
— Dona Camila, que mulher é essa?
— A moça que estava do meu lado.
— A senhora está sozinha. Não tem mais ninguém aqui.
— Só pode ser sacanagem...
Camila se interrompeu e olhou para a calçada. Não havia ninguém a vista. Foi para mais perto da janela e olhou descendo a rua e depois subindo e nada. Do outro lado da rua a mesma coisa.
— É sério isso? — ela perguntou.
— Sim. A senhora só deve estar cansada. — O cobrador disse num tom muito apaziguador. — Senta aqui, que logo a gente já chega no seu ponto.
Camila se sentou no lugar apontado por ele e apenas esperou os minutos que ainda faltavam em silêncio. Tentava entender o que acontecera, mas nada fazia sentido. Por que Julia? O que ela poderia querer com ela? Era ajuda mesmo? Era uma armadilha? A parada finalmente chegou e Camila só conseguiu descer depois de assegurar para o motorista e o cobrador que estava bem. A casa dela era bem perto mesmo e ela agora não planejava se desviar desse trajeto.
— Mãe?
— Aqui no quarto, filha. — a mãe respondera com a voz embargada de sono do quarto.
— Eu tenho que te contar uma coisa que aconteceu comigo agora há pouco.
— Tá tudo bem? — ela já estava sentada na cama e preocupada.
— Tudo sim. — Camila começou acalmando a mãe. — Foi só estranho. — confessou e depois narrou tudo o que tinha acontecido desde que saíra da loja.
A mãe ficou muito quieta, mas não pareceu duvidar de nada. Sem nenhuma satisfação saiu do quarto para depois voltar com um telefone colado na orelha.
— Sim. Ela está bem. Estou olhando para ela.
Camila ouvia alguém falando do outro lado da linha, mas não conseguia discernir nem quem falava nem o que falava.
— A Camila falou que não deixaram ela seguir.
— Mãe, não precisava acordar ninguém... — tentou dizer, mas a mãe só ouvia quem falava no telefone.
— Faço isso. — ela disse e depois acenou um sim com a cabeça antes de continuar. — E amanhã levou ela aí. Muito obrigada.
— Quem era?
— Dona Lumena. Amanhã de manhãzinha a gente vai lá resolver o seu problema. Enquanto isso, essa noite você dorme aqui.
— E o pai?
— Eu explico. Ele dorme no sofá ou na sua cama.
Camila até conseguiu dormir um pouco, já a mãe quase nada. Passou a noite de olho na filha sem saber o que tinha acontecido. Na manhã as duas foram até a casa de dona Lumena ainda cedo, Camila precisava chegar no trabalho a tempo. A benzedeira tinha algumas suspeitas, no entanto, admitiu que não sabia o que se passou na noite passada. Não era conhecido dela nenhum caso de espírito possessor que tomasse a forma de outra pessoa e se manifestasse por tanto tempo e de maneira tão clara. As três mulheres passaram o que pareceu ser mais de uma hora ali, Dona Lumena andava, benzia, rezava, dava instruções olhando de uma para a outra, Camila e mãe em silêncio, apenas ouviam tudo com atenção.
— Depois desse trabalho mediunidade não é mais para você, minha filha. Mas isso não é problema, penso eu...
— Não, Dona Lumena. Ela nunca viu nem ouviu nada quando criança. E depois da noite de ontem, ela não quer mesmo nenhum contato com os espíritos.
Camila só percebeu naquele momento o quanto a mãe tomara as rédeas da situação, até respondia por ela. Não achou ruim, pelo contrário. Foi bom se sentir cuidada e naquela situação ela não era diferente de uma criança. Além disso confiava na mulher mais velha, ela tinha uma autoridade que Camila só imaginava nas bruxas das histórias que ela lia.
Só quando olhou para o aparelho depois de tudo é que viu que, na verdade, horas tinham se passado, muitas mais do que ela pensava. Depois da despedida na porta da casa, as mulheres seguiram seus caminhos: Dona Lumena voltou aos seus afazeres, a mãe foi para casa e Camila correu para o ponto de ônibus de celular na mão, precisava comer algo antes de ir trabalhar e já estava tarde para voltar para casa, comeria algo no centro.
Pareceu rápido, provavelmente porque Camila estava muito ansiosa em ver Julia. Queria muito contar aquela história e precisava pegar o telefone dela também, teria sido muito mais tranquilo se ela pudesse ter ligado para a amiga quando tudo aconteceu. Fechou rapidamente os botões da camisa que usava como uniforme e dessa vez nem passou pelo espelho para ver se estava tudo bem. Atravessou a porta que dava para a loja em si com os olhos alertas a procurar Julia.
Ela estava ao lado do bebedouro de costas para Camila, não estava usando o uniforme naquele dia. Não quis correr, mas caminhou o mais rápido que podia até lá, depois Camila colocou a mão no ombro da amiga para que ela se virasse.
— Oi! Tudo bem? — Julia disse com um sorriso no rosto.
Camila demorou a responder, a cena era tão corriqueira, mas parecia haver algo errado. O tom de voz acanhado não estava lá, o sorriso parecia quase... perfeito demais. Havia algo, ela só sabia que havia algo fora do lugar.
— Tudo, sim. E você?
— Tudo. — a resposta foi muito lacônica, mas o sorriso continuava impecavelmente simpático.
— É que você não está de uniforme...
— Ah, sim... Já estava pensando nisso tem tempo. Decidi pedir demissão daqui.
Era mais informação que seria perfeitamente normal em outro dia, mas parecia errada, parecia estranha, parecia talvez até uma mentira. Camila não soube muito bem o que responder, ou talvez até o que perguntar para a amiga.
— Você parece um pouco distraída hoje... — Julia apontou.
— Ah, eu só fiquei surpresa. — começou a explicar. — Sei lá, deve ser inveja. Tudo mundo aqui quer fazer isso. — Camila se aproximou a sussurrar a última parte e evitar perder o emprego.
— Isso não é lugar para mim.
“De onde veio essa confiança toda” era tudo o que Camila conseguia pensar. Viu a amiga começar a caminhar para a sala da administração onde alguém do RH estaria fechando o processo.
— Ontem aconteceu uma coisa muito estranha! — Camila disparou para chamar a atenção da amiga.
Julia se virou. O olhar parecia muito curioso, ela também achava que tinha algo mais, só não conseguia entender o que ela estava lendo naqueles olhos.
— Acho que cochilei no ônibus e sonhei com você...
— Comigo?
— Foi estranho. Você estava no ônibus e me pedia ajuda.
— Eu? E que horas foi isso?
— Quase meia noite... sei lá.
— Já era tarde. Uma hora dessas eu já estava morta jogada na cama.
Camila se lembrou da palavra tarde. Julia dizia para ela nesse “sonho” que talvez já fosse tarde demais. Ela precisava esquecer dessa história. A amiga estava bem, estava até pronta para mudar a vida. Era ela mesma que estava presa numa história de terror que só tinha existido para ela.
— Verdade. — concordou com Julia. — Eu preciso começar o meu turno. Tudo bem, mesmo? — ela perguntou para ter paz.
— Nunca estive tão vivo!
Camila achou estranho mais uma vez. “Vivo”? “Por que não viva?” Ela se lembrou de Dona Lumena falando que estava protegida e que não precisava mais ter medo de nenhuma possessão. Precisava deixar essa história toda no passado. Julia só estava levando a vida dela para onde achava melhor e ela estava deixando um medo fazer qualquer coisa parecer estranha.
— Qual seu nome mesmo? — Julia perguntou.
— Camila. — ela respondeu automaticamente.
— Prazer te conhecer.
Julia saiu. Camila ficou onde estava... apavorada.