A histeria paira sobre a casa. A menina sentada no espaçoso sofá, observa a confusão de falas e gritos percorrem a sala e migrarem de cômodo em cômodo. Na cozinha mais sons se aderem a histeria. Com medo ela corre e se tranca em seu quarto. Nervosa, a menina põe uma música no computador, na esperança de abafar a discussão que perdura mais de um hora. Com a destreza de um felino, a menina esgueira-se sem dificuldade até a porta destrancada. Atravessa o pequeno quintal indo na direção do portão. O portão fechado entrava a fuga. Ela encara o imenso muro. E sem pestanejar, começa a escalar o enorme paredão. Sentada no topo, olha para a casa. Porque em si, tem o receio de ir à rua sem rumo tarde da noite. Da casa escuta a cólera.
— Você não me ajuda em nada! Sempre no trabalho ou com os amigos. Desta maneira não dá.
— Não ponha a garota nisso. Eu ajudo trazendo dinheiro para essa casa.
— Como não vou pôr. Eu necessito de você dentro e fora de casa.
— Eu trabalho demais.
— Eu também trabalho. Porém há coisas que só você pode fazer. Ela precisa de educação. Eu não quero ela cometendo os mesmos erros que eu. Ela precisa de limites. precisa que um homem que a ame mostre como são os homens lá fora.
— Então o problema de vocês sou eu. – e se joga.
Caminhando com passos apertados e movendo a cabeça em todas as direções na procura de algum vizinho fuxiqueiro. A garota percorre metade da rua Gilbert Simas. Ao chegar na esquina, fixa-se sob o halo de luz incandescente no cruzamento com a avenida Professor Costa Ribeiro. Com olhos aguçados, sonda o final da avenida. Neste trecho da avenida é três vezes maior que o resto da rua.
— Nossa... há ninguém por aqui. – indagou-se.
Os pontos de ônibus vazios, os bares fechados, até o trailer de lanches que funciona do ocaso ao alvorecer encerrou o expediente mais cedo ou não abriu.
A maior parte do céu se encontra limpo. A menor parte continha extensas nuvens passageiras proveniente da leve chuva que banhara todo o bairro. Vez ou outra, a lua se esconde atrás das poucas nuvens.
Apreciando o brilho sedutor da lua. Ela corre, subindo a Professor Costa Ribeiro. Sabia a noção do perigo sobre si. Mas a coragem florescia como nunca antes. Sempre tivera um fascínio pela noite. Sentia que suas trevas insistiam em um convite a uma misteriosa liberdade.
Chuta os sacos de lixo, salta e bata na placa que indica a rua Álvaro de Magalhães. E toca as campainhas que surgem pelo caminho. E ria, como ria. Parecia estar num parque de diversões.
Continuou por mais uns instantes. Então seus pensamentos foram para sua casa. Um aperto angustiante no peito que nunca sentira a assaltou e a euforia a abandonou. As lágrimas deslizaram timidamente por sua face. Lembrando de todas as coisas que viu e escutou em casa. Sentou-se na calçada entre as ruas Pires Salgado e Monsenhor Castelo Branco. A baixou a cabeça. Fechou os olhos e deixou cair um rio de lágrimas.
Um ruído captado pela menina, gradativamente ia aumentando. O som agora nítido, revela-se um ritmo semelhante a alguma banda de marcha. Erguendo a cabeça e percebendo não haver quaisquer indícios anormalidade. A avenida e as ruas transversais continuam desertas.
Na rua Monsenhor Castelo Branco, desponta um bufão fazendo malabares com cinco bolinhas rosa fluorescente.
— Só posso estar louca!
Dois palhaços montados em monociclos com as mãos direitas unidas. Vão na direção do primeiro. A união é desfeita, e de forma sincronizada, eles giram, giram e giram. Um arlequim usando perna de pau, surge dançado com maestria. Tamanha curiosidade que a fez seguir na direção dos palhaços.
Fantasiados vão surgindo da esquina. Aproximou dum adolescente envergando uniforme de marcha vermelha com detalhes em lilás tocando trombone. Próxima de perguntar o porquê da algazarra. Viu a multidão colorida que preenchia a última quadra da rua Castelo Branco. Na vanguarda, uma fileira de belas jovens fantasiadas de havaianas, dançam uma coreografia estranha e animada. Atrás vem a massa juvenil circundando um grande carro alegórico colorido e luminoso. Com um numeroso contingente preenchendo os dois andares do carro. A música fluí pelos músicos no topo e por outros marchando pela multidão.
Mel é engolida pela massa. Os jovens dançam pulam e gritam ao embalo da música. E deles, mel se esquivar, sendo em vão na maioria das tentativas. Sentia-se diferente entre eles. As festas que costumava ir continham bebidas alcoólicas, cigarros e drogas ilícitas. Com esse misterioso bando a ignição da felicidade é a alegria.
O grande carro alegórico locomovia devagar, arrastando-se ao lado dela. Enquanto observa alguns dos jovens no primeiro e segundo andar atirando no ar serpentinas e confetes, outros, berram para as casas convidando a todos juntaram-se à folia.
Fascinada, seus olhos refletem o brilho e a luz colorida que emana do carro imponente. Quando de forma súbita, sai do transe:
— Hei guria. - perguntou-lhe uma menina que a sacudia pelos braços. — Cadê a alegria?
Trajando uniforme de banda índigo com detalhes em verde e o chapéu verde com detalhes em índigo. Por baixo do chapéu um lindo rosto redondo, com grandes olhos azuis que assemelhavam a cristais. A pintura escura delineando seus olhos deixa explícito o contraste com a pele bem branca.
A menina abre um sorriso cativante, e diz:
— Oi, eu sou Alexandra, como vai você nesta noite esplêndida, Mel?
— Como você sabe meu nome?
— Eu? – solta a estridente gargalhada. — Todos nós sabemos bastante ao seu respeito. Mas não é comigo com quem deve falar. - Mel espera a resposta em vão. e pergunta:
— Com quem eu devo falar?
— Oras, com o regente desta noite.
— É... e se eu não quiser ver esse seu regente. – disse arrogantemente.
— Aqui ninguém é obrigado a nada. Ainda mais no seu estado. Se desejas ir para solidão da rua, vá.
— Como assim meu estado? – indagou Mel preocupada.
— Suba até o segundo andar. – apertando a distância com o rosto outro, diz. — Você vai gostar. – voltou com a cabeça e sorriu.
Alexandra afastou-se e continuou a foliar. Abrindo os braços para abraçar outro rapaz com uniforme rosa com detalhes em Laranja. O rapaz a agarra pela cintura e começa a girar. As cores do uniforme da estranha garota ia Oscilando. O verde se transformava em índigo e vice-versa. Ambos gritavam enquanto esbarram nos outros. Assim foram abrindo caminho e sumiram na multidão.
Mel anda até a traseira do grande carro alegórico. Onde havia uma escada. Subindo, passou pelo primeiro andar e continuou a subir ao último andar. Então uma mão enfiada numa luva branca surge. Mel tenta ver o rosto que pertence àquela mão. No entanto, a face se mantém ofuscado pelas intensas luzes que emanam do carro. Um nimbo formado pelo forte brilho atrás do sujeito, circunda a cabeça fazendo-o parecer um ser celestial.
— Venha senhorita. – fluía do rosto um timbre doce e sereno.
Mel agarra a mão enluvada que a puxa para cima. No segundo andar, frente a frente com o dono da mão. Mel fica vermelha. Era o rapaz mais lindo que já vira. A pele clara e seus olhos e cabelo eram negros como a noite. As palavras sumiram de sua boca de tão encantada.
— Está tudo bem com você?
— Quem é você?
— Eu sou o líder durante esta noite.
— Líder de quê. Quem são vocês?
— Nós mel, somos a marcha esplendor da noite e nosso lema é alegria alegria.
— Eu nunca escutei nada sobre vocês. Quais são os motivos estarem fazendo isso neste horário. Faltam seis meses para o carnaval.
— Ah pequena, nem me fala em carnaval. É mais trabalho que diversão. E as pessoas não saem com todo esse barulho?
— Shiii... tudo tem seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer. Nosso tempo agora é para se divertir. Vamos aumente a euforia e diminua a inibição dentro de você.
Seguindo os conselhos do jovem regente, Mel se lança na diversão junto com a marcha.
Uma pequena parte multidão segue pela rua Castelo Branco no próximo cruzamento, mas o imenso veículo vira na avenida Padre Peroneille.
— viu Erick, eu te disse que ele viraria.
— Acertou em cheio. Veremos onde ele nos leva dessa vez.
Atravessando as ruas do bairro, sempre que avistava a casa de algum conhecido. Berrava pela tal pessoa, porém todo esforço não adiantava. Mais a frente, quando o grande veículo entra na Ministro Arthur Costa, em diz:
— Estamos no Rio dos Cachorros. e pela contramão.
O Córrego arborizado e rodeado por colunas de concreto unidas por haste de ferro. Divide o fluxo do trânsito. A Marcha atravessa uma larga ponte em enfrente a igreja Santa Rosa de Lima. Seguindo pelo sentido correto. Do alto do carro, avistando um amigo vindo na direção da marcha pela calçada de concreto pintado de vermelho do rio. A tranquilidade do garoto, que distraído, digitava no celular. a deixa confusa.
Quando o carro passa por ele, ela acena e grita:
— Pedro aqui, aqui!
— Ele não pode te ver ou te escutar. Desista. – disse o líder.
— Mas como isso é possível?
— Olhe novamente para o seu colega.
Torcendo o pescoço, a menina vê o garoto cortando a multidão sem sofre choque com os outros. Pedro cruza e desaparece dentro do carro. Mel dispara pro lado oposto. Debruça-se aflita sobre o guarda-corpo. Pedro aparece e seguindo seu caminho se vai como quem cruzasse uma rua qualquer.
— Ele ainda pertence ao outro lado.
— Meu amigo transpassou o Carro!?
— Você já sentiu um arrepio pelo corpo ou um frio na espinha de repente pela rua? Estas sensações são o que alguns sentem quando estão (faz sinal com os dedos) dentro do carro.
— O que são vocês, e o que eu estou fazendo aqui?
— Nós, sob o auspício do grande carro, estamos encarregados de buscar as almas dos jovens que morrerem.
— Então eu morri. Como isso aconteceu. Eu apenas sentei no chão. – disse desesperada.
— Você não morreu... Ainda. O seu caso é raro, muito raro. Nós vimos você dançando na rua. Sua felicidade tocou a todos nós. Foi maravilhoso ver você livre ao luar. Contudo, no apogeu da euforia a sua flor interna murchou. A tristeza foi tão intensa que senti seu desejo de morrer. Infelizmente não era a sua hora.
— Então como eu cheguei aqui?
— Eu pedi aos primordiais uma oportunidade de resgatar novamente a sua alegria. Você é uma pessoa muito especial porque essa dádiva é concedida a poucos.
— Você pediu? – disse desacreditada.
Mel novamente corada vira o rosto envergonhada. O líder leva sua mão enluvada até o queixo da menina. Conduz o rosto da menina até o dele. Mel o olha com as pupilas dilatadas. E o jovem rapaz a beija. Um beijo que faz ambos perderem a noção do tempo.
O grande carro alegórico para bruscamente. E interrompendo o romance do jovem casal. O líder olha ao redor e sorrir para ela, e diz:
— A alegria eterna chegará para alguém neste momento.
Todos os outros jovens param e batem palmas em comemoração. Outros assobiam e dão urras. Mel olha ao redor procurando algo fora do normal.
— Nós estamos Franz Liszt, na praça central. Será que alguém vai morrer engasgado num desses trailers de sanduíches.
— Você acha que basta apenas morrer enquanto se é jovem para partilhar conosco a alegria eterna, doce Mel? Nós jovens, lançamo-nos para a noite, com o intuito de vivermos máximo o momento. Porém, infelizmente fatos ruins acontecem. Acidentes, brigas, intoxicação por drogas e outras coisas acabam ceifando nossas vidas.
— Como assim ceifando nossas vidas?
— Imagine-se ansiosa para a comemorar a data mais importante para a maioria dos jovens, o décimo oitavo aniversário. Faltam um mês, e você conta dia por dia. Comunica a todos seus amigos data especial. Seus amigos e você vão planejando a noite semanas antes. Eis que chega o dia tão aguardado e todos seus pensamentos são para a noite. Quando anoitece, você e seus amigos compram meia-dúzia de bebidas. Pegam o último ônibus que vai para o centro da cidade. Bêbados e cantando, a bebidas a vão passando de mão e mão. Outros passageiros com o mesmo destino, também ganham. E se juntam ao grupo nas canções de Cazuza e Legião Urbana. Todos rumo à felicidade. No ponto alto da sua noite. Tudo desmorona. Numa hora você está andando e cantado pela calçada junto dos amigos. Na outra, a gravidade desaparece. Seus pés vão subindo. Como fosse que alguém ligasse uma centrifuga com você dentre. Os giros eram intermináveis. E nos seus últimos momentos, você deitada no asfalto úmido e frio tenta respirar. Contudo, cada vez que você tenta suas costelas fraturadas perfuram mais seus órgãos. Ainda lembro o gosto do sangue fluindo pela boca.
Primeiro veio o estrondo depois os gritos inundam o lugar.
— Foi uma batida de moto. – berrou uma mulher gorda que se encontrava sentada comendo sanduíche ao lado esquerdo do carro alegórico. Abaixo do jovem casal.
— Meu deus. - Tornou a dizer. - O motoqueiro vinha pela Georges Bizet. Eu vi o vulto dele passando a mil. Infelizmente o carro vinha de lá pra cá no cruzamento da farmácia.
Outra mulher que a acompanhava respondeu:
— Jesus tenha misericórdia dessa alma. – analisou a amiga por um momento, a olhou incrédula e tornou a falar: — Mas que visão mulher!
— Minha filha, eu sou a encarnação da fofoca. Agora levante esse rabo gordo daí e vamos ver o acidente. Quero ter o que dizer amanhã para aqueles adolescentes sem juízo na escola.
Muitos curiosos correm para ver. Formando um cinturão humano envolta do local do acidente. Mel observa um rapaz negro de cabelo raspado se afastando de dentro do cinturão. Ele vem em direção do grande carro alegórico. Como se estivesse sob algum feitiço. Todos que seguiam a pé a marcha, se aproximam do rapaz. Aglomeram-se envolta do jovem.
— Mel – disse o líder. – Tenho que dá as boas-vindas ao novo integrante. - O líder vai com a Mel até a dianteira do carro. — Seja bem-vindo a marcha esplendor da noite, Gabriel. E seu lema agora é.
— Alegria alegria! – gritam os integrantes.
O cinturão se desfaz revelando o novo integrante. Este agora veste novas roupas. Seu uniforme de cetim azul céu com detalhes alaranjado.
Do céu, chuvisca confetes. Mel sente o olhar profundo do novo integrante sobre si. Os jovens no grande carro e ao chão, perscrutam Mel como se ela fosse uma profunda caverna. Então, apavorada, ela diz:
— O que há de errado com eles. Por que estão me olhando desse jeito. – pergunta ao regente. Virando ao líder ver em sua face estampado o mesmo olhar analítico dos seus companheiros.
— Seu momento conosco terminou. - diz o rapaz. Mel o abraça e diz:
— Eu não estou pronta para te deixar.
— Eu tampouco. Só que não é correto. Você não pertence a marcha.
— Eu... – Mel tenta dizer, no entanto, o regente a interrompe e a beija.
A doce menina se entrega ao último beijo. – O volume de confetes aumenta. Ele a empurra.
Mel bate e rola por cima do guarda corpo envolto em tiras de led. Indo ao chão. Os confetes envolvem-na igual a uma placenta deixando-a na posição fetal.
Tocando o solo, a placenta se desfaz. No alto do carro, Erick perdido em seus pensamentos. Observa a miríade de pequeninos papeis coloridos espalhados pelo chão.
— Eu odeio quando ele conduz a gente a este bairro. Isso aqui é o purgatório. – disse Alexandra. – Vamos, Erick. Cadê a alegria. A noite ainda não terminou.
— Mel, Mel, Mel. Acorde menina!
— Meu deus. O que houve com essa garota para sentar na esquina sozinha a essa hora tão tarde.
— O que você acha. Ela fugiu por causa da nossa briga.
— Oh Deus, proteja-a.
— Vamos ligue para a SAMU.
Quinze minutos depois chega a ambulância. A paramédica pula da ambulância e pergunta o que aconteceu.
— Nós não sabemos. – dizem.
A paramédica chega os sinais vitais da menina. E cheira sua boca.
— Cadê os pais?
— Nossos pais morreram há seis meses num acidente de trânsito. - diz o irmão.
— Somos irmão dela. - diz a Jovem.
— Vocês são maiores?
— Sim, sou a mais velha.
— Olha, ela está em coma. Mas o que acarretou esse coma, não sabemos. E esse é o perigo. Ela pode ter engolido ou tomado algum remédio com a intenção de tirar a própria vida. Não é normal sentar no portão alheio sozinha a essa hora da noite. Eu preciso saber o que a fez fugir de casa.
— Nós estávamos brigando e ela fugiu. não vimos ela sair. - disse o irmão.
— Vocês precisam entrar em acordo. São responsáveis por ela. Vocês são os alicerces para que ela não siga um caminho errado. São os pais dela.
— Você tem razão. - o rapaz abraça a irmã.
— Qual o nome dela.
— Melissa.
A paramédica volta para a viatura e diz:
— Meu deus, não consigo ver adolescente que logo penso na minha filha rm casa.
— Os rapazes da “27” atenderam um acidente que ocorreu quase agora neste bairro. - disse o motorista.
— Deixa eu adivinhar. – disse a paramédica. – Moto, né?
— Acertou, mulher. O rapaz veio a óbito antes de chegarem. Eles estão no caminho voltando para o QG.
A paramédica pega o rádio para contatar a central e diz:
— Central, estou levando para o Getúlio Vargas uma adolescente morena com idade 15 e 16 que foi encontrada pelos irmãos na rua sozinha desacordada. Câmbio.
— Ok "11". Vou avisa-los da sua chegada. Câmbio.
— Obrigada, central. Câmbio, desligo.
![](https://img.wattpad.com/cover/318118696-288-k348324.jpg)