All Monsters Are Human

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A primeira vez que decide observá-la estava me sentindo ridículo, porque perderia meu tempo vivendo minha história novamente, ainda mais pelos olhos de uma mundana. Qual era o sentido? Enquanto estava tentando entender o porquê de estar ali, por causa de uma garota qualquer, observava as pessoas e os carros passando na rua em um final de tarde chuvoso. Do outro lado avenida, em uma típica casa no subúrbio da Inglaterra, podia vê-la vagamente através da janela aberta no segundo andar.

Atravessei a rua, caminhando despreocupado até a entrada da casa. O fato de os mundanos não poderem me enxergar facilitou minha invasão e logo estava parado diante das escadas que me levariam ao quarto dela. Enquanto subia para o andar de cima, o silêncio da casa me cativava, será que ela estava sozinha em casa? Será que ela sentiria minha presença? Balancei a cabeça, fazendo alguns fios loiros platinados caírem na frente dos meus olhos, afastando esses pensamentos enquanto abria um sorrio cruel. Ela nunca se interessaria por um monstro como eu.

Adentrei seu quarto lentamente, atento a tudo a minha volta e com uma mão sobre a espada em meu cinto de armas, mesmo sabendo que não havia nenhuma ameaça a mim naquele ambiente... nenhuma armadilha. Era um cômodo grande, as paredes brancas com alguns desenhos e frases escritas, uma cama de casal no centro, uma enorme prateleira de madeira cheia de livros, uma poltrona perto da janela e uma porta - que provavelmente levaria ao banheiro.

Assim que parei para observá-la, não consegui mais desviar meu olhar. Ela estava sentada em sua cama, em meio a várias almofadas e travesseiros, com o livro apoiado em suas pernas. Seu longo cabelo castanho caia na frente de seu rosto, formando uma espécie de cortina a sua volta, enquanto lia ferozmente a discussão que tinha com Jace, me deixando intrigado a cada reação que deixava transparecer.

As provocações que fazia a Jace no livro logo se transformaram em uma briga e ela, extasiada com os acontecimentos, apertou o livro com força e mordeu seu lábio inferior. Seus olhos brilhavam em expectativa, o sangue fervendo nas veias devido a ansiedade, fazendo seu coração bater cada vez mais rápido. A cada palavra seus músculos tencionavam mais, ela não queria que eu perdesse aquela luta, torcia com todas as forças para que eu matasse o menino anjo e saísse vivo daquela batalha.

Podia sentir seu desespero quando a Lightwood apareceu para ajudar Jace e, assim que vi seus olhos perderem o brilho e as lágrimas começarem a escapar de seus olhos devido a minha morte, passei a me questionar: como essa garota podia chorar por um demônio como eu?

*

Dois anos haviam se passado e meu interesse e curiosidade por aquela mundana apenas crescia. Não conseguia entender seus sentimentos, entender como ela conseguia criar laços tão fortes com pessoas fictícias e que nunca conheceria. Sempre afastava esses pensamentos, lembrando da minha criação, do sangue negro que corria em minhas veias... lembrando que não tinha, e nunca teria, sentimentos como aqueles.

Ela levou as mãos tremulas ao cabelo, deixando evidente o seu nervosismo com o desenrolar do livro. Com o passar do tempo tudo nela havia se tornado tão familiar: suas manias, seus jeitos, seus sorrisos. No entanto, naquela noite, as palavras que lia com tanto afinco e desespero a incomodavam, fazendo com que eu me sentisse desconfortável. Por alguma razão essa garota mexia comigo e não conseguia entender o porquê... talvez nunca consiga.

Não se importando aonde estava ou quem estaria ignorando, seus olhos permaneciam vidrados nas palavras impressas em tinta preta, fazendo com que seus pais, parentes e amigos ficassem entediados, até irritados com as atitudes dela. Eu, no entanto, não conseguia parar de observá-la e, toda a vez que o fazia, o demônio dentro de mim se manifestava. O ódio e raiva usuais, que bombeavam em meu sangue, traziam à tona memórias desagradáveis da minha infância, tentando me fazer desistir de ter sentimentos e de ser mais humano, querendo que eu desistisse dela.

O que me impressionava mais sobre ela é que apesar de todos os crimes que cometi, todas as pessoas que eu matei, algumas que ela até se importava, me cativava o seu esforço para ver o meu lado, para entender os meus motivos. Constantemente a observava por entre as páginas, a vendo discutindo com as amigas quando levava o livro à escola, tentando as convencer de que eu não era um monstro, de que Jace não era perfeito.

Sua voz doce ao expor os fatos, argumentando astutamente sobre os acontecimentos dos livros anteriores, me cativavam de maneira assustadora, porque eram nesses momentos que ela deixava evidente seu afeto por mim. Fazendo com que eu, um egoísta sem coração, desejasse não ter se apossado de seus sentimentos, porque sabia que uma hora iria destruí-la - sem ao menos hesitar - como meu pai havia feito comigo. Afinal eu sou um monstro e não tinha salvação.

*

Seu ritmo de leitura havia diminuído, não a encontrava lendo compulsivamente como nos anos anteriores, ela estava se afastando, evitando o final da história, evitando o único caminho existente. Ela sabia o que iria acontecer ao final do livro, sua inteligência e perspicácia contribuíram para isso, mas ela estava sendo fraca... o amor havia feito isso com ela.

Em um pequeno papel, que mantinha dobrado no final do livro, estavam escritos seis nomes em uma letra caprichada... os seis nomes dos personagens que ela achava que iriam morrer. Eu sabia que meu nome estava ali e sabia que iria morrer, todos deviam saber, mas ela parecia procurar em cada frase um indício de que aquele não seria o meu final, uma evidência de que o vilão iria vencer.

Não a decepcionei durante a narrativa, o demônio e o estrategista dentro de mim executavam os meus planos com maestria, destruindo institutos e adquirindo as armas e pessoas que precisava para vencer a minha guerra. Sabia que ela não desejava a morte de muitos que eliminei, mas seus olhos brilhavam a cada batalha ganha pelos meus crepusculares... ela estava do meu lado, me apoiava e me admirava, da maneira que eu desejava que minha irmã, Clary, fizesse.

Ela sentiu ciúmes quando chamei Clary para ser minha rainha. Ela sabia que minha irmã planejava me destruir, o que fazia sua raiva crescer ainda mais. Suas bochechas vermelhas, os punhos fechados e os olhos castanhos perdendo o típico brilho, foram os indícios de que ela perderia o controle. Não demorou muito e o livro foi fechado sem nenhuma delicadeza, sendo abandonado na cama enquanto ela saia pela porta magoada.

Eu sabia que havia quebrado o seu coração, pisoteado os seus sentimentos, mas essa não seria a última vez, ainda tinha muito para ser destruído. Me impressionou quando minutos depois ela retornou ao quarto e retomou sua leitura, sua determinação evidente em seus gestos, ela queria chegar ao final da história.

Perdido em pensamentos, enquanto a observava morder os lábios, não reparei nas lágrimas que se acumulavam em seus olhos. Foi apenas quando seu grito desesperado preencheu o cômodo, que eu notei o seu estado. Ela estava destruída, seu coração havia sido despedaçado enquanto batia rapidamente em seu peito, tornando tudo mais doloroso. E, enquanto observava as lágrimas escorrerem sem parar por seus olhos inchados e escutava seus soluços e murmúrios inteligíveis, eu sabia que todos comemoravam a minha morte.

Pude perceber quando seu coração perdeu uma batida e sua respiração ficou ofegante diante do retorno de Jonathan, o meu outro lado... o meu lado bom. Sua expressão permanecia surpresa enquanto lia, se agarrando ao seu último fio de esperança, se iludindo sobre o meu destino uma vez mais. Ela voltou a chorar com a morte de Jonathan e fechou o livro, incapaz de finalizar a leitura. Observei ela, intrigado, deitando na cama com o livro abraçado contra seu peito e eu soube: o amor havia a destruído.

O amor é uma fraqueza no final das contas, um sentimento que se apodera de você e te destrói de dentro para fora, não deixando nada para ser salvo, restando apenas as ruinas para te atormentar pelo resto da vida. Eu havia aprendido essa lição da pior maneira possível e agora era a sua vez. Por mais que eu quisesse evitar o seu sofrimento sabia que não poderia, sou apenas um personagem fictício e ela uma pessoa no mundo real.

Enquanto suas lágrimas secavam, conforme o choro cessava, me deixei levar por todos os momentos que passei com ela. Sabia que quando acabasse o livro a veria com menos frequência, seria apenas uma sombra em sua mente, uma memória dos momentos que passamos juntos, e tive a certeza de que nunca seria esquecido. Depois de anos eu havia encontrado alguém que me possibilitou sentir, alguém para me dar uma chance, alguém que me amava...

Eu havia encontrado a minha rainha.

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