Fui um ceifeiro de almas

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Apresentações não são fundamentais para falar o que costumava fazer. Nem parece que já se passaram tantos meses que trabalhei para um ceifeiro de almas, parece tudo tão distante, imaginário, nublado e sem esperanças de realmente ter sido real. Isso resume a sensação para quem começa, é complicado lidar com a morte nas ocasiões em que alguém está prestes a entrar no outro plano. Só posso afirmar que, é difícil no início, você se depara com alguém esfaqueado e agonizando por conta da dor, muitas vezes expulsando sangue demais até que o socorro segue para aliviar a sua aflição. Em outras alguém queimado ou vítima de algum acidente envolvendo produto químico, é horrível a tortura, o cheiro da carne carbonizada, a angústia e o desespero, é brutal e agonizante. Os atropelamentos e mortes no trânsito acontecem de maneira rápida, eles mal sentem a agonia até que você esteja lá para levá-los para o outro plano.


Dando uma breve contextualizada dessa forma parece ser algo simples, até porque no Brasil não foram registrados tantos acidentes trágicos envolvendo mortes em 2019( época em que estive nos dois lados do plano). Mas, não trabalhei apenas aqui, aparecia onde for encaminhado e assim por diante. Soube lidar com isso desde o momento que aceitei e assinei o tratado. Posso afirmar que todas as emoções e dúvidas não foram obstáculos, porque encontrei-me naquela situação, quebrado demais e nada mais me impressionava depois que o meu filho morreu... O meu garotinho, com apenas oito anos, a criança mais especial e maravilhosa que conheci, os meus olhos queimam só de imaginar isso.


Meu primeiro caso foi um rapaz, um adolescente de pouca idade, ele caiu da árvore de mau jeito, e o impacto todo foi em sua cabeça e o pescoço se partiu como um graveto em poucos segundos. Não havia condições por causa da altura, para resistir a pancada. Ele foi o meu primeiro serviço... Nunca irei esquecer esse.


Uma morte dessa parece ser súbita e indolor, mas quando você é um humano e está entre a vida e a morte, perdura por muito mais tempo. A ampulheta é pungente, degradante e impiedosa. Me aproximei dele e percebi o inchaço no seu pescoço, a agonia daquele garoto com seus dedos tortos e os pés dobrados de forma assustadora. Ele estava desesperado, coloquei a mão embaixo da sua nuca e aproximei-o, ele me perguntou se eu era o seu herói, um jogador de futebol famoso por aí. Como de se esperar, disse que sim. Foi a aparência que o mostrei. Os humanos não conseguem lidar com a forma que nós nos apresentamos, a forma da morte é bem mais imaginável do que você pode pensar.


O garoto reclamou que estava doendo, e senti sua agonia. Coloquei a mão no seu corpo e aquilo passou para mim. É sufocante, é como um engasgo desleixado, você alivia a sua tortura e ele fica pronto para entrar no outro plano. Guiei sua alma depois que deixou a casca. Após a morte, sem respirar e nenhum vestígio mais de luta pelo seu corpo, a atração pelo túnel é tudo que uma alma precisa sentir. Estava confuso, como todos ficam, porém foi apenas orientado para seguir sua transição. Como disse, tratava-se apenas de um garoto, tão novo que não existia ainda nenhuma maldade dentro de si. Ele foi para o céu. Depois da minha primeira travessia, a experiência foi gratificante, ajudei aquele rapaz em seu momento de desespero. Ele agradeceu satisfeito... a pessoa que aqui está, o substituto.


Você deve estar se perguntando por que aceitei esse negócio, não é? Por qual razão estive me prendendo dentro de tanta angústia, mortes e lidando com tudo isso durante aquele tempo, suportando aflições de outros. Irei explicar o porquê e o que tive que aguentar, apenas por um motivo importante... Fora ele, não existe nada além disso, não fui o tipo de gente que se preocupava com os outros, nem fui um pai atencioso e amoroso o suficiente quando tive oportunidade para ser. Esse tipo de coisa você só percebe quando perde a oportunidade de ter aproveitado algo que não vai ter volta.

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