Grito

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Jan Rodrigues acordou animado naquela manhã. Ou, pelo menos, naquilo que se convencionou chamar de manhã já que, onde ele estava, não havia períodos do dia. Jan Rodrigues estava no espaço.

Ele acordara animado pois aquele era seu último dia no espaço. Só precisava passar mais algumas horas ali, fazer um último conserto no exterior da nave, e então poderia voltar pra casa, para o conforto de sua família.

Ele estava longe há tanto tempo. Havia partido em missão para estudar a superfície de Marte um ano e meio antes. Ele não poderia pousar, pois a tecnologia de que dispunha ainda não era suficiente para permitir um pouso e uma nova decolagem no planeta vermelho, mas os avanços tecnológicos prometiam que essa seria uma realidade bastante próxima. Ainda assim, Jan havia chegado onde nenhum ser humano jamais havia conseguido até então.

Entretanto, houveram alguns contratempos e as coisas não saíram exatamente como planejado, já no princípio. Jan deveria liderar uma equipe nessa expedição, porém as coisas mudaram quando a Guerra estourou.

O conflito entre os Estados Unidos e a Rússia não era algo exatamente novo. Desde o século XX, a animosidade entre os dois gigantes sempre esteve presente. Algumas batalhas aconteceram, pessoas morreram, mas ainda assim, as coisas ainda se mantinham em um nível de equilíbrio.

Quando faltavam menos de cinco dias para partida de Jan e sua equipe, as tensões chegaram às vias de fato, e a Guerra começou. Cancelar o lançamento seria um desperdício monstruoso de recursos, mas o governo precisava investir dinheiro no esforço de guerra. A resolução desse impasse se deu na forma de Jan indo sozinho, já que mandar apenas um homem ao espaço é mais barato que mandar uma equipe inteira.

Sabendo de sua missão, Jan iniciou a viagem. O tempo passara, o trabalho fora feito, e agora tudo ficaria bem. Dali a menos de vinte e quatro horas, Jan poderia estar com sua família, revendo todas as pessoas que amava, sentindo o que já não sentia há muito tempo, a sensação de estar perto de outros seres humanos.

Enquanto tomava seu café na ponte de comando, admirava a Terra e todo o seu resplendor. Podia ver toda a Europa e a Asia naquele momento, tudo parecendo tão pequeno e distante. A Rússia também estava ali, aquele país gigante. Jan acreditava que a guerra era uma besteira e que, se todos pudessem ver o que ele via, não gastariam esforços em uma guerra.

Um pequeno brilho chamou sua atenção e lhe tirou de seu devaneio. Era um pontinho de luz minúsculo, mas inconfundível, em um ponto na região oeste da Rússia, muito provavelmente em Moscow. Imaginou que, para ser visto daquela distância, algo grande devia estar acontecendo. Entrou em contato com o controle da missão, mas lhe asseguraram que tudo estava normal, e eles não sabiam de nada. Ainda assim, Jan ficou preocupado, mas tentou não pensar no assunto.

Poucas horas depois, quando estava se preparando para fazer sua última saída para fora da nave, para alguns consertos de rotina, Jan podia ver seu lar. Toda a América, de norte a sul, estava banhada pela luz do sol. Mais uma vez, um ponto de luz chamou sua atenção, dessa vez sobre a região leste dos Estados Unidos, provavelmente New York. Pouco depois, outros pontos luminosos começaram a aparecer por todo o país. Mais uma vez, o controle da missão voltou a assegurá-lo que tudo estava bem. Que tudo estaria resolvido logo. Seu tom de voz, por outro lado, não era muito animador.

Jan então saiu, após colocar todo o equipamento, para fazer a última verificação de rotina antes de voltar para a Terra. Logo ele não precisaria mais se preocupar com a vida no espaço. Já resolvera, inclusive, que se aposentaria. Deixaria essas missões longas para os mais jovens.

De onde estava, Jan podia ver todo o planeta à sua frente, o azul dos oceanos brilhando intensamente. O próprio pensamento de que estava chegando em casa já era o suficiente para lhe deixar emocionado. Ao terminar os últimos reparos, olhou mais uma vez para aquele planeta que parecia tão grande, mas que era tão pequeno, comparado a outros planetas e às distâncias quase imensuráveis que o separavam desses outros mundos. Aquela era sua casa. Aquele era seu lar, e ele estava voltando. Uma lágrima percorreu seu rosto, em direção ao sorriso estampado em sua boca.

Então os pontos luminosos começaram. De início eram poucos, apenas um aqui e outro ali, mas os números foram aumentando rapidamente. Eram parecidos com os que havia visto antes, mas havia algo diferente. Além da enorme quantidade de pontos luminosos, cada um crescia cada vez mais. Eram como pequenas manchas na vastidão do planeta, mas Jan sabia que essas manchas eram equivalentes a várias cidades, talvez estados e, até mesmo, países. O que seria capaz de produzir um efeito luminoso tão grande assim, a ponto de ser visto do espaço?

E então a compreensão de toda a situação o atingiu em cheio. Só havia uma coisa que poderia produzir um efeito tão grande assim. A luz sobre Moscow, depois sobre New York e por todo o território do país. Jan nunca havia visto nada parecido, mas imaginava que, se houvesse alguém no espaço em 1945, provavelmente teria visto algo semelhante na pequena ilha nipônica.

Enquanto tudo isso passava por sua cabeça, percebeu que alguns pontos luminosos cresciam muito mais rápido, avançando cada vez mais. Não era possível ouvir nada no vácuo do espaço, mas se estivesse na Terra, teria ouvido o rugido ensurdecedor que se originava da dor do planeta. Se atentou a dois pontos na América do Sul, e um na costa oeste dos Estados Unidos. Sabia que aquilo estava acontecendo no mundo inteiro. Itália, Japão, Islândia.

Rapidamente, os pontos luminosos não eram mais pontos, e sim manchas. Pouco depois, existia apenas a claridade, da qual Jan foi forçado a se proteger. Quando finalmente conseguiu olhar de volta, não podia acreditar em seus olhos. O que antes era um planeta, agora era apenas um amontoado de destruição e destroços cósmicos. Assim como antes, uma lágrima escorreu por seu rosto, mas não era de felicidade. Demorou alguns segundos para que seu cérebro processasse os acontecimentos, e mesmo assim, jamais conseguiria entender por completo.

O astronauta ficou imóvel por alguns minutos, em estado de estupor emocional. Seu cérebro parecia ter entrado em curto e parado de funcionar, e talvez ficasse assim para sempre. A cena era como uma pintura, imóvel, estática. Foi necessária apenas uma sinapse, um pequeno espasmo em seu dedo mindinho direito que quebrou o estupor do último ser humano vivo.

Jan procurou forças em todo o seu corpo, em sua mente estilhaçada. Seus pensamentos já não existiam mais de maneira racional. Buscou no âmago de seu ser cada última gota de energia, e liberou tudo em um único grito. O último grito da humanidade. Um grito que ecoaria pela vastidão do universo, partindo dos destroços de um pequeno planeta, próximo a uma pequena estrela. Um grito que jamais seria ouvido por ninguém.

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