2. A Faroleira

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Trabalhar no farol envolvia um numeroso conjunto de atividades. Porém, todas elas eram simples. Simples para Malia, pois crescera acompanhando o avô, faroleiro, e aprendendo o ofício.

Durante a infância e a adolescência, Malia ia à escola pela manhã e passava as tardes com o avô Apolo. Ela caminhava até o farol, no horário de maré baixa, com a água nos tornozelos e as mãos carregando seus tênis, meias, e o embrulho com o almoço enviado pela mãe para que comessem juntos. No começo da tarde, Apolo já havia percorrido o limitado perímetro da ilha de pedra onde ficava a construção, preenchido o livro com quaisquer ocorrências — sempre raras naquela pequena cidade litorânea — e feito o primeiro registro metereológico do dia. Quando chegava, Malia limpava e polia as lentes de Fresne da lanterna, processo que faziam todos os dias para evitar problemas que comprometessem o funcionamento do farol. Ela também realizava uma segunda ronda, para garantir que todos os equipamentos estivessem em ordem, e regava as flores dos canteiros. No fim da tarde, sentava-se junto ao avô perto do equipamento de rádio comunicador antigo e os dois jogavam uma partida de xadrez que sempre terminava bem a tempo de, antes do pôr do sol, iniciar o procedimento para acender a lanterna e ligar o motor que a faria girar. Depois disso, eles entrariam no barquinho e o avô a levaria de volta ao continente em um trajeto que não duraria muito, mas que seria impossível de realizar a pé quando a maré já tivesse subido. Apolo, então, retornaria ao farol para passar a noite. Ele ficava ali durante seis dias na semana. Aos domingos, tinha um dia de folga e podia ir para casa. Seria substituído por algum oficial da Marinha que estivesse nas proximidades ou algum outro cívil temporariamente contratado para tal. Quem conhecia Apolo sabia que sua casa de verdade era o farol. No local onde sua filha morava com o marido e Malia, ele era apenas visita.

Aos 20 anos, Malia era a única dos jovens na cidade que não havia ido embora. Alguns partiam no ensino médio, outros esperavam a faculdade, mas ela não quisera ir em nenhum momento. Havia também Eric, mas ninguém esperava que ele fosse, uma vez que era cadeirante, órfão de mãe e filho de um pai superprotetor. Por isso, mais uma vez, Malia se destacava do restante e era alvo de burburinhos. Todos sempre estavam comentando sobre a garota preferir não deixar os cabelos crescerem, usar camisetas largas demais e nunca ter namorado. Agora, também comentavam sobre não ter ido embora e preferido ficar no lugar do avô como faroleiro depois que Apolo falecera. Faroleiro. Ninguém se dava o trabalho de flexionar o gênero da palavra. Malia era a nova faroleira da cidade.
O avô deixara de herança um rádio a pilhas que ela usava para ouvir notícias e um pouco de música. Malia preferia o trabalho de sintonizar as estações do que usar seu smartphone. Fazia tudo por ali como observara Apolo fazer por anos. Menos fumar. Tentara acompanhá-lo algumas vezes, mas nunca gostara realmente, e decidiu que continuar tentando seria tolice. Apolo não havia dito nenhuma palavra sobre, mas ficou feliz com a decisão de Malia na época. À tarde, quando já havia realizado os últimos registros metereológicos do dia, Malia desligava o rádio e deixava que o oceano fosse sua trilha sonora. Em uma antiga merendeira vermelha da época de escola, ela guardava suas ferramentas para esculpir em madeira. No momento, trabalhava em algo para enfeitar o quarto de sua irmã, de apenas três anos.

Apolo tinha muitas histórias a contar sobre coisas que presenciara nos 40 anos que vivera no farol. Havia dividido muitas dela com Malia. Histórias sobre resgates de barcos de pesca, visitas de pessoas importantes e, as favoritas da neta, contos sobre as coisas que vira depois que a noite caía no farol ou em dias de muita neblina. Malia esperava ter as próprias histórias para contar um dia. Ela sabia que muitas coisas não haviam sido reveladas por seu avô. Seu palpite é que ele não queria que ela tivesse medo do farol.

Em sua primeira noite de neblina densa, Malia girava uma das goivas que usava para esculpir distraidamente nas mãos e pensava no avô. Ela não estava com medo. Não acreditava que houvesse nada ali que pudesse assustá-la. Os perigos de verdade estavam esperando por ela quando o barco atracava no continente. O farol, porém, era sua casa, assim como fora a casa de Apolo. Malia ficaria bem enquanto estivesse ali.

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