Prólogo

10 0 0
                                    

  O corredor era longo e estreito, possuía grandes portas coloridas e ao fundo, um velho piano feito de bétula, tocava um ritmo de Jazz, doce, calmo e penetrante, aos ouvidos do homem nu, que jazia sob sua força natural de viver.

  Uma gota de suor escorreu por sua coluna, quando finalmente foi capaz de se levantar. Em cima dos próprios pés, o homem se viu em frente a uma explosão de cores, que o seu cérebro não era capaz de processar. Perdido e sozinho, a única coisa que o confortava, eram as notas de piano tocadas em calmaria, trazendo o mesmo sentimento de alguém que fumou o seu primeiro baseado nos fundos de uma sala de aula. O transe o inundou. A agonia penetrou seu ser quando o piano fechou sua grande cauda e entrou na porta, que brilhava vermelho sangue.
 
  O homem se arrepiou, sentiu pavor em meio ao silêncio gritante, inibido, sozinho. Ele correu o máximo que um ser vivo desnutrido conseguia, a porta em vermelho se distanciava cada vez mais, o suor aumentava, seu cansaço aumentava, sua vergonha alheia aumentava. A porta ficava cada vez mais longe... vergonha... cada vez mais difícil... cansaço... impossível de se chegar lá...desespero.

  Só quando sua esperança morreu, minutos depois, que ele parou de correr aquela corrida inútil e sem conclusão. Inútil sim, era tentar sobreviver àquilo tudo.

  O cabelo crespo e maior que o normal, bateu em seus ombros, fazendo quase uma cosquinha, encharcado de suor. A barba longa, quase na altura do umbigo, pinicava o rosto abatido, que esbanjava olheiras, catarro e remela secos e os olhos vermelhos, denunciando talvez, o resultado de tudo o que passara. Seus músculos tremiam, cansados. Ele estava cansado. Apareciam mais e mais cicatrizes com o tempo... talvez, se render fosse a coisa certa a se fazer.

  Talvez ele teria paz.

  Coçou a região de uma das costelas envoltas de uma fina camada de pele, pronta a se rasgar no menor acidente. Sentia dor. Estava sendo cortado, seus músculos estavam sendo triturados. A vergonha, a porta, o piano, sua vida, nada mais era importante. A porta ainda estava lá, no mesmo lugar, na frente do homem que se intimidava e derretia. Seu cérebro estava derretendo. O calor aumentou e sua pele agora queimava. Se coçou mais uma vez, agora no meio do estômago. Facas o cortavam em filetes de carne...suculentos, podia sentir isso.

  Ainda em meio ao desejo, o homem exausto e derrotado se virou pensando que talvez, uma explosão fosse melhor para a sua mente, do que o derretimento completo. Tudo estava diferente, no entanto, nada era o que tinha sido há minutos atrás, e, conforme sua visão se distanciava para além do corredor, seus sentidos iam se perdendo, e o que fora vibrante e cheio de cor antes, naquele exato momento, se tornava opaco e sem vida.

  Não existiam mais, as portas grandes e coloridas, o corredor longo e estreito, na verdade, agora que realmente se dera conta, não podia mais ver as paredes do corredor, nem mesmo as portas entre elas. Tudo ficou branco, não dava para diferenciar nem sequer a parede do chão, olhou para cima, uma névoa densa impedia que ele visse o teto. Se fosse um sonho... talvez fosse um sonho. Era um idiota se estivesse sofrendo tudo isso por um sonho, um maldito sonho.

  Bateu contra a própria cara, com o restante das forças que tinha. As notas de piano voltaram a ressonar alto, mas dessa vez em uma marcha fúnebre, que violentava a alma do homem pardo e magricela a cada nota grave tocada. Finalmente estava chorando, caindo em lágrimas dolorosas. Insatisfeito consigo mesmo. Era tudo um estúpido sonho...sim! Uma merda de um sonho! O homem se ajoelhou rendido, exausto. Em meio as suas lágrimas, cada vez mais fortes, foi nascendo um sorriso, e em poucos segundos, um riso frouxo e desajeitado, era um sonho. Sentou no chão de frente ao que foi uma mistura de cores no passado, o sangue agora saindo, não da porta em que tinha o piano, mas sim dos seus olhos.

  Passaram-se mais alguns minutos, as lágrimas jorravam como peixes em uma cachoeira no período de pesca, suas mãos, antes imóveis e desnecessárias, agora passavam a dor que a sua alma sentia para o seu corpo, com marcas vivas e aberturas fundas, a cabeça martelava de dor, mas apesar de tudo, continuava rindo de si mesmo. A risada frouxa se tornou então, uma gargalhada cada vez mais alta, mais poderosa, que ecoava sobre todo o corredor e voltava para a sua origem. Gargalhava, chorava sangue, se arranhava, tudo isso por causa da merda de um sonho.

  O sentimento de comédia, foi embora tão rápido como veio. Tentou se controlar o máximo que pôde, e com o passar do tempo, o homem finalmente conseguira para de se arranhar. Também tinha parado de chorar. Por fora parecia estar bem, mas por dentro, ainda sangrava com os cortes e arranhões que penetraram sua pele, e que agora residiam em seu coração. O homem magricela se levantou, de volta ao que considerava normal para si, sem vestígios do que acontecera nas últimas uma ou duas horas – isso se pudesse de fato contar o tempo em que estava naquela loucura –, vestido de forças para novamente lutar contra si mesmo e o grande corredor de portas.

  Era outro homem, completamente renovado, feliz, livre de todas as tristezas que passara por sua corrida, há alguns minutos. O piano parou de tocar a marcha fúnebre e se estilhaçou em pedaços, e, em meio ao monte de madeira, ferro e cordas que se espalhavam pelo chão, veio uma névoa que se tornava cada vez mais forte. Limpou o suor da cara e focalizou os olhos diretamente na névoa, que aos poucos se tornava uma fumaça cada vez mais clara, e de dentro dela, saiu uma mulher perolada de cabelos esvoaçantes, que ao olhar para ele, chorou e gritou de dor, como se ver ele, a machucasse terrivelmente.

  Ele deu alguns passos para trás, com medo da imagem de sua esposa. Os estilhaços do velho piano queimavam e o fantasma da mulher derretia.

  – Não vai fazer nada de novo, Leonardo? Onde ela está agora...ela...aquela garota tão linda, mais...como você dizia mesmo? Ah, sim! Mais gostosa do que eu...– o fantasma correu com as mãos esticadas em direção ao pescoço de Leonardo, que se assustou e começou a correr o mais rápido que pôde.

  – Não...não, não, não, não...NÃO!

  – VOCÊ! – a garota passou por dentro de Leonardo, o deixando com uma dor no peito descomunal e sumindo por completo.
Seu coração estava quebrado.

  – Me desculpe...eu não queria, foi um acidente...eu... – estava completamente sem palavras.

  De cabeça baixa, Leonardo virou para trás para pedir desculpas a sua falecida mulher, sua pele, do lado direito do corpo, começara a arder como se estivesse em meio as chamas, sua pele a se rasgar como se tivesse caído em meio a uma folhagem de uma grande árvore, sua barriga doía como se tivesse batido com forças em um dos galhos, em meio a uma queda de provavelmente três andares. Era real dessa vez. Nada de sonhos estúpidos que faziam cérebros derreter. A mulher não estava mais lá, em seu lugar, um pontinho preto surgiu no mais longe do grande corredor, agora completamente branco. Ele vinha rápido, Leonardo logo pôde perceber que, como espiral, o pontinho preto crescia e engolia tudo o que tinha em sua volta, como um grande buraco negro. O homem nu fechou os olhos, e esperou que a morte viesse.
 
  Não havia mais razão para estar ali.

Manancial Onde histórias criam vida. Descubra agora