Prólogo (parte 2)

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Karina sorria para todos. Seu sorriso constantemente enfeitava o rosto dotado de beleza. Para quem quer que passasse por si, Karina sorria. Os olhos, que brilhavam para qualquer um, estavam sempre atentos.

Ela lembrava do aniversário de todos os colegas, levava comida a mais para dividir no intervalo, deixava punhados de ração espalhados pela cidade, confortava as famílias que esperavam por notícias na ala de emergências.

A mulher conhecia a fragilidade da vida; sabia bem como eram as rachaduras, os cortes, as feridas. Apesar das cicatrizes profundas, Karina não sentia raiva, tampouco rancor. Ela considerava-se azarada, muito azarada. Depois que sua mãe faleceu, a morena perdeu o único motivo para acordar pela manhã. Embora os médicos aleguem que seu óbito foi por AIDS e pneumonia, ela sabia: a negligência que ronda os hospitais públicos e a irrelevância de sua classe a mataram.

Karina trabalhava todos os dias, tardes e noites num hospital renomado, mas não tinha o direito de receber os cuidados dos médicos e aparelhos dali. Porque até mesmo as doenças e tragédias afetam as pessoas de formas diferentes. Karina e sua mãe nasceram com o sobrenome errado, no bairro errado, com a conta bancária insignificante — e isso foi o suficiente para sentenciá-las a uma vida miúda, curta, dolorosa.

Karina chorava diariamente a partida da mãe, mesmo que, em vida, ela não tenha sido uma mãe perfeita. Estava, na verdade, bem longe disso.

A doença que a levou foi fruto de seus relacionamentos de uma só noite. A mulher levava homens diferentes a cada semana para casa, sem se importar com a presença da filha. Karina usava fones de ouvido, afundava a cabeça no travesseiro, trancava seu quarto — adquiriu este hábito após quase ser atacada por um dos amantes de sua mãe. Karina odiava isto, mas odiava ainda mais as centenas de garrafas espalhadas pela casa; odiava quando sua mãe bebia até perder a consciência; odiava, principalmente, quando ela saía para comprar comida e sumia por dias ou semanas. A menina aprendeu a viver assim, mesmo odiando.

Karina amava sua mãe, mas sabia que não era amada de volta.

A morena não conhecia o amor materno nem paterno. Não sabia como é a face de seu pai, nem qual é seu nome ou como soa sua voz. Nenhuma foto, nenhuma história.

O mais perto de uma família que Karina conheceu foi quando o tio, irmão mais velho da mãe, apareceu em sua porta duas vezes: na primeira, levou dinheiro e a cumprimentou rapidamente; na segunda, perguntou à mãe e a si se queriam mudar-se e morar com ele. Elas nunca saíram do cubículo imundo e cheio de mofo onde residiam.

No funeral da mãe, esperava reencontrar o tio, mas ninguém além dela jogou flores sobre o caixão. No dia seguinte, Karina foi ao trabalho; não queria viver o luto, pois sabia que aquilo a afundaria ainda mais.

Karina não faltava com sua obrigação de recepcionista desde os 16 anos, quando conseguiu a oportunidade. Mesmo com o corpo dolorido e a cabeça pesada, Karina gostava de seu emprego (apenas o salário não lhe agradava, mas se contentou). Ali, via diante de seus olhos como fatalidades acometem a todos, embora em graus diferentes. A mesma doença que tirou a vida de sua mãe seria facilmente curada em uma daquelas salas. Pois a morte quase não visitava aquele hospital.

A Yoo preocupava-se genuinamente com todos os azarados que atravessavam a ala de emergências. As famílias, desoladas e com ansiedade, escutavam as melhores palavras de Karina. Ela sabia como ardiam as lágrimas e fazia de tudo para evitá-las nos rostos alheios.

A Yoo não tinha amigos para sair e dar risadas, nem para chorar em seu colo. Nunca soube o que são beijos molhados nem como a paixão embrulha o estômago.

Seu coração era grande; grande demais, e ela não aguentou carregá-lo.

Como pulsam os corações | Karina (aespa)Onde histórias criam vida. Descubra agora