Rua Amarela dos Sisos

1 0 0
                                    



A Rua Amarela dos Sisos é como um mundo sozinho. Uma dimensão de si própria. As personagens que por ela passavam, existem nela apenas. Quando saem da rua ou antes de nela entrarem, não existem. Não para aqueles que nela tomam poiso permanente. Pois o antes e o depois não o sabem.

Por exemplo, a Senhora Caracóis, uma senhora com caracóis ruivos e óculos pontiagudos, passa a existir quando entra na ponta Este da Rua Amarela dos Sisos às treze horas e cinco minutos em ponto e deixa de existir quando sai na ponta Oeste da mesma. Ela existe não mais não menos do que vinte minutos, duração da sua travessia. Claro que vinte minutos não é o tempo necessário para a passagem dos personagens na rua. Outras personagens demoravam em média apenas sete minutos. Mas a Senhora Caracóis insiste em usar os seus perfeitos sapatos de salto alto, em perfeita harmonia com o imaculado fato cinzento, que lhe atrasam o passo durante toda a sua caminhada pela calçada irregular da Rua Amarela dos Sisos.

Ela podia abdicar dos sapatos. Usar outros. Optar por uns mais adequados ao chão que pisa. Ou pelo menos diminuir os centímetros das agulhas que usa debaixo dos calcanhares. Podia até trocá-las por paralelepípedos. Mas, teimosa, a Senhora Caracóis não o faz. Todos os dias passa pela rua com toda a sua dificuldade nos seus saltos demasiado altos, tentando a razão a magoá-la a qualquer instante. Ela consiste num perigo não só para si. Outros partilham do desastre que ela pode causar. Um paço em falso, uma queda para o lado errado, um desastre não calculado.

Mas, eu, não sendo mulher usante de tais perigosos sapatos, não saberia como carregar tal porte ou ser causa de tão alheia catástrofe. Sinceridade em ordem, é preciso coragem, persistência e habilidade para conseguir o que a Senhora Caracóis conquista todos os dias. Não é fácil, presumo – assistindo à sua luta –, caminhar com tal artesanato nos pés pela estrada de calçada irregular. Quase uma metáfora para a vida de uma personagem. Isso é se um considerar que a vida não é linear, nem certa. Talvez seja a Senhora Caracóis a personagem da nossa história que representa a dificuldade da vida, a persistência que um ser tem de ter para a ultrapassar, sem desistir, sem trocar de caminho, sem optar por atalhos menos favoráveis.

Uma história. É isso que isto é. Pois como já referi, a Rua Amarela dos Sisos é uma dimensão em si. Os seres que nela habitam e que por ela passam apenas existem dentro de si. Mas certeza de nada tenho, pois também eu sou um ser, tal como os outros, desta Rua Amarela dos Sisos.

O Velho das Rugas sai para a Rua Amarela dos Sizos, pela primeira vez às oito em ponto da manhã. Traz consigo um cigarro e um isqueiro. Ocupa, como a lei lhe indica, o degrau de cimento da porta verde em frente ao portão pelo qual sai. O seu cabelo cinzento faz lembrar as cinzas das chaminés sujas, e a sua cara e mãos estão marcadas por proeminentes sulcos. Sentado com as pernas afastadas, acende o cigarro, guardando o isqueiro no bolso da camisa. Faz uma careta cada vez que puxa o tabaco para os seus pulmões. Uma careta igual à de uma criança obrigada pelos pais a comer um alimento de que não é particularmente fã.

No total, o Velho da Rugas, costuma sair cinco vezes para a rua, sentando-se no mesmo banco, guardando o isqueiro no bolso da camisa e fazendo uma careta cada vez que puxa o tabaco para os seus pulmões. Na segunda vez que sai, seria o que é considerado a hora de almoço. Dessa vez traz um avental verde manchado por substâncias coloridas ao peito e o cheiro de comida consigo. Pelo portão pelo qual sai, ouvem-se vozes altas, ordens do que fazer e do que é necessário. Dentro do edifício confusão predomina. Mas a confusão apenas dura até à vez seguinte que sai. Antes de começar novamente entre a sua quarta e quinta saída.

Se a Senhora Caracóis representa a dificuldade e persistência que se tem de ter na vida, o Velho das Rugas ocupa a posição que revela a amargura do seu resultado. Hábitos. Vícios. Memórias. Remorsos; que não podem ser deixados para trás ou esquecidos.

Rua Amarela dos SisosOnde histórias criam vida. Descubra agora