Dentro de meus sonhos sou apenas o vazio, o escuro colidindo com minhas próprias barreiras, limites criados pelas sombras para que meus terrores noturnos não escapem por nenhuma brecha sequer. Essa era eu, ou ao menos o que almejava ser. Um delírio, uma força maior do que a que tenho. Algo em que pudesse escapar para dentro e não lidar com o angustiante acordar.
Porém a angústia é minha companheira, e os primeiros sons da manhã tornam-se realidade aos meus ouvidos, o barulho da chuva caindo sobre a janela se torna um lembrete dos dias escuros de inverno, o peso do meu corpo agora é algo que faz parte da minha consciência. Assim como o respirar pausado, as cobertas que por alguma razão nunca amanhecem cobrindo meu corpo todo e o cheiro forte de café recém servido. Esse aroma tentador é o lembrete das minhas obrigações como servente de mais uma hospedagem em que me escondo nos quase dois anos de fuga. Não, não cometi nenhum crime – na verdade já cometi alguns – só que nenhum me traria sérias consequências – na verdade trariam sim – mas não vamos falar disso agora, certo?
Finalmente levanto e sinto com os pés descalços cada fibra áspera de madeira no chão, acelero o passo colocando rapidamente meu uniforme cinza escuro de atendente, procuro o par de sapatos gastos e corro para dar um jeito no meu rosto. Não tenho tempo para organizar a bagunça que deixei no quarto na noite anterior, cheguei tão cansada que não guardei as roupas limpas no armário e muito menos lembrei de costurar a almofada que achei no depósito e iria para o lixo. Bem, posso deixar isso para fazer mais tarde. O que preciso agora é de uma escova boa e água limpa.
Paro em frente ao espelho e me encaro por alguns segundos, as olheiras melhoraram um pouco, meu cabelo parece estável depois de algum trato, mas não se compara ao que costumava ser anos atrás, não só o cabelo para falar a verdade. Ele ainda continua longo e preto, isso posso afirmar, no entanto eu já não sou mais a mesma de antes. Os segundos viram minutos enquanto vejo que minha pele está pálida, que os ossos do meu rosto saltam para fora e tento imitar minha antiga postura de filha mimada. Não consigo, e isso é uma vitória. Você pode estar pensando que me arrependo de ter mudado, e não é isso. Meu corpo me lembra que consegui por meios próprios achar uma vida só minha. Não é aconchegante, nem bela como um conto de fadas. Mas ainda assim é melhor do que ter a pele perfeita e carregar marcas de correntes internas.
- Você ainda não desceu, Aisha?
O sussurro me pega de surpresa e deixo escapar um som de aflição.
- Desce agora, se não vai ter que ficar até a ceia. E não vou te ajudar dessa vez.
- Perdão, Ester. Pelo sagrado! Não fique com raiva – Respondo envergonhada. A fiz ficar até a louça da ceia ontem a noite.
Abro a porta do quarto e a vejo com a tradicional expressão de preocupação no rosto, ela fica charmosa com o olhar de quem a qualquer momento pode começar a chorar.
-Não faça essa cara, vão jogar rosas no seu caminho para te arrancar um sorriso assim que você chegar ao refeitório.
-Credo, até parece que algum desses ogros já tocou numa rosa – ela rebate. E provavelmente está certa.
Meu trabalho atual é auxiliar no atendimento da hospedaria Cofragens, feita do que era uma carpintaria e hoje em dia abriga viajantes, bêbados, trabalhadores dos campos de grãos e fiscais do reino. Como os caminhos por esse lado da terra não andam tão prósperos, não recebemos tantos visitantes por aqui, então sobram os bêbados e trabalhadores. Lavra é uma região de plantio, onde existem pequenas vilas em que o povo forma uma grande massa de camponeses, artesãos e uns poucos guardas. Os únicos lugares para obter dinheiro requerem trabalho nas plantações de grãos, nas hospedagens dos senhores das terras ou sendo aprendiz em algum oficio, mas não aceitam mulheres; somente a prostituição, e ainda não precisei me deitar com os homens daqui.