Livro Primeiro: Duna

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     Na semana anterior à partida para Arrakis, quando a agitação dos últimos preparativos chegara a um furor quase insuportável, uma velha veio visitar a mãe do menino, Paul.
     Era uma noite quente no Castelo Caladan, e as pedras antigas que serviam de lar à família Atreides havia vinte e seis gerações exalavam aquela sensação de suor resfriado que costumavam adquirir pouco antes do tempo virar.
     Fizeram a velha entrar pela porta lateral, que ficava no fim da passagem abobadada perto do quarto de Paul, e deram-lhe a oportunidade de espiar o jovem, deitado em sua cama.
     À meia-luz de uma luminária suspensa que pairava perto do chão, o menino, acordado, viu uma volumosa forma feminina parada à porta, um passo à frente de sua mãe. A velha era a sombra de uma bruxa: os cabelos eram um emaranhado de teias de aranha a cobrir-lhe as feições obscuras, e os olhos cintilavam feito joias.
     – Ele não é pequeno para a idade, Jéssica? – perguntou a velha. Sua voz chiava e arranhava como um baliset desafinado.
     A mãe de Paul respondeu, com seu suave contralto:
     – É fato conhecido que os Atreides começam a crescer tarde, Vossa Reverência.
     – Foi o que ouvi, foi o que ouvi – chiou a velha. – Mas ele já tem 15 anos.
     – Sim, Vossa Reverência.
     – Está acordado e nos ouve – disse a velha. – O tratantezinho dissimulado – ela riu disfarçadamente. – Mas a realeza precisa ser dissimulada. E se ele for realmente o Kwisatz Haderach... bem...
    Nas sombras de sua cama, Paul tinha os olhos semicerrados. Dois globos ovalados, pássaro-brilhantes – os olhos da velha – pareceram crescer e refulgir ao fitar os dele.
     – Durma bem, seu tratantezinho dissimulado – disse a velha. – Amanhã você precisará de todas as suas faculdades para enfrentar meu gom jabbar.
     E ela se foi, empurrando a mãe dele para fora do quarto e fechando a porta com uma batida firme.
Paul ficou deitado, em vigília, perguntando-se: O que é um gom jabbar? Em meio a toda a confusão daquele período de mudança, a velha foi a coisa mais estranha que ele já tinha visto. Vossa Reverência.
     E a maneira como a mulher se dirigira à mãe dele, Jéssica, como se ela fosse uma criada comum, e não o que era de fato: uma Bene Gesserit, a concubina de um duque e a mãe do herdeiro ducal.
Será o gom jabbar alguma coisa de Arrakis que eu tenho de conhecer antes de ir para lá?, ele se perguntou.
     Com a boca, ele deu forma às estranhas palavras da mulher: gom jabbar... Kwisatz Haderach... Ele tivera de aprender tantas coisas. Arrakis era um lugar tão diferente de Caladan, que as novas informações deixaram Paul tonto. Arrakis. Duna. Planeta Deserto.Thufir Hawat, o Mestre dos Assassinos de seu pai, explicara tudo: seus inimigos mortais, os Harkonnen, ficaram em Arrakis oitenta anos, dominando o planeta em regime semifeudal, contratados pela Companhia CHOAM para minerar a especiaria geriátrica, o mélange. Agora os Harkonnen estavam de partida e seriam substituídos pela Casa dos Atreides, com poderes feudais plenos – uma aparente vitória para o duque Leto. Contudo, dissera Hawat, sob as aparências se escondia o mais mortal dos perigos, pois o duque Leto era popular entre as Casas Maiores do Landsraad.
     – O homem popular incita a inveja dos poderosos – dissera Hawat.
     Arrakis.
     Duna.
     Planeta Deserto.
     Paul adormeceu e sonhou com uma caverna arrakina, onde se viu completamente cercado por pessoas em silêncio, à luz fraca dos luciglobos. Havia ali algo de solene, era como uma catedral, e ele ouvia um som fraco: o pinga-pinga-pinga de água. Ainda imerso no sonho, Paul sabia que se lembraria dele ao acordar. Ele sempre se lembrava dos sonhos premonitórios. O sonho desvaneceu.
     Paul despertou e viu-se em sua cama quente, pensando... pensando. O mundo do Castelo Caladan, sem brinquedos nem companheiros da mesma idade, talvez não merecesse sua tristeza quando chegasse a hora de se despedir. O dr. Yueh, seu professor, dera a entender que o sistema de classes faufreluches não era seguido à risca em Arrakis. O planeta abrigava um povo que vivia na orla do deserto, sem caid nem bashar que o governasse: um povo arisco chamado fremen, sem registro nos censos da Régate Imperial.
     Arrakis.
     Duna.
     Planeta Deserto.
     Paul percebeu que estava tenso e decidiu praticar uma das lições mentecorporais que sua mãe lhe ensinara. Acionou as respostas com três inspirações rápidas: mergulhou na percepção flutuante... focalizar a consciência... dilatação da aorta... evitar o mecanismo desfocado da consciência... estar consciente por escolha própria... o sangue enriquecido a inundar as regiões de sobrecarga... não se obtém alimento-segurança-liberdade somente por instinto... a consciência animal não vai além do imediato nem penetra a ideia de que suas vítimas podem ser extintas... o animal destrói e não produz... os prazeres animalescos não se afastam dos níveis sensuais e fogem aos perceptuais... o ser humano exige uma rede de contextos para enxergar seu universo... a consciência focalizada por escolha própria, é isso que dá forma à rede... a integridade do corpo segue o fluxo de sangue-nervos de acordo com a percepção mais profunda das necessidades da célula... todas as coisas/células/criaturas são impermanentes... lutam por uma permanência-fluência interior...
     E a lição se repetiu vez após vez na percepção flutuante de Paul.
      Quando a luz amarelada da aurora tocou o parapeito da janela de Paul, ele a sentiu através das pálpebras fechadas, abriu-as, escutando o alvoroço reavivado do castelo, e viu as familiares vigas decoradas do teto de seu quarto.
     A porta que dava para o vestíbulo se abriu e sua mãe espiou dentro do quarto, com os cabelos cor de bronze velho presos no alto da cabeça por uma fita negra, a face oval despojada de emoção e os olhos verdes fixos e solenes.
     – Já está acordado – ela disse. – Dormiu bem?
     – Sim.
     Ele a estudou em toda a sua altura, viu um vestígio de tensão nos ombros quando ela se pôs a escolher roupas para ele, tirando-as das prateleiras do closet. Outra pessoa não teria notado a tensão, mas ela o treinara na Doutrina Bene Gesserit, nas minúcias da observação. Ela se virou, com um paletó quase formal nas mãos. O traje ostentava o gavião vermelho, o timbre dos Atreides, no bolso de cima.
     – Vista-se rápido – ela disse. – A Reverenda Madre está esperando.
     – Sonhei com ela uma vez – comentou Paul. – Quem é ela?
     – Ela foi minha professora na escola da ordem Bene Gesserit. Agora ela é a Proclamadora da Verdade do imperador. E Paul... – ela hesitou. – Fale-lhe de seus sonhos.
     – Farei isso. Foi por causa dela que ganhamos Arrakis?
     – Nós não ganhamos Arrakis – Jéssica sacudiu o pó de um par de calças e pendurou-o com o paletó sobre o toucador ao lado da cama. – Não faça a Reverenda Madre esperar.
     Paul sentou-se sobre a cama e abraçou os joelhos.
     – O que é um gom jabbar?
     Mais uma vez, o treinamento que ela mesma lhe dera expôs sua hesitação quase invisível, um ato falho que ele interpretou como medo.
Jéssica foi até a janela, abriu as cortinas e olhou na direção do monte Syubi, atrás dos pomares às margens do rio.
     – Você saberá ... o que é o gom jabbar daqui a pouco – ela disse.
     Ele ouviu o medo na voz dela e ficou admirado.
Jéssica falou, sem se virar:
     – A Reverenda Madre está esperando em minha sala de estar. Por favor, apresse-se.

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