Thufir Hawat entrou de mansinho na sala de treinamento...

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     Thufir Hawat entrou de mansinho na sala de treinamento do Castelo Caladan, fechou a porta suavemente. Ficou parado ali um momento, sentindo-se velho, cansado e surrado pelas intempéries. Sua perna esquerda doía no ponto em que o haviam ferido uma vez, a serviço do Velho Duque.
     Três gerações deles agora, pensou.
     Olhou para o outro lado do recinto iluminado pela luz do meio-dia que, aos borbotões, atravessava as claraboias, e viu o menino sentado de costas para a porta, absorto em documentos e mapas espalhados sobre uma mesa em L.
     Quantas vezes terei de dizer ao garoto para não se sentar de costas para a porta? Hawat limpou a garganta.
     Paul continuou debruçado sobre os estudos.
     A sombra de uma nuvem passou sobre as claraboias. Mais uma vez, Hawat limpou a garganta.
Paul se endireitou e falou, sem se virar:
     – Eu sei. Estou sentado de costas para a porta.
     Hawat reprimiu um sorriso e atravessou a sala com passadas largas.
     Paul ergueu os olhos para o velho de cabelos brancos que se deteve a um dos cantos da mesa. Os olhos de Hawat eram dois poços de prontidão num rosto escuro e profundamente vincado de rugas.
     – Ouvi você chegar pelo corredor – disse Paul. – E ouvi você abrir a porta.
     – Os sons que produzo podem ser imitados.
     – Eu saberia a diferença.
     É bem possível, Hawat pensou. A mãe-bruxa certamente está ampliando o treinamento dele.Gostaria de saber o que sua preciosa escola acha disso. Talvez por isso mandaram a velha censora: para colocar nossa querida lady Jéssica na linha.
     Hawat colocou uma cadeira diante de Paul e sentou-se de frente para a porta. E o fez incisivamente, recostou-se e examinou a sala. De repente, pareceu-lhe um lugar estranho, um lugar-estrangeiro, agora que a maior parte do equipamento tinha sido levada para Arrakis. Restavam uma mesa de treinamento e um espelho de esgrima, com seus prismas de cristal inativos, e o estafermo ao lado dele, todo acolchoado, lembrando um antigo soldado de infantaria estropiado e maltratado nas guerras.
     Ali estou eu, pensou Hawat.
     – Thufir, no que está pensando? – Paul perguntou.
     Hawat olhou para o menino.
     – Estava pensando que logo sairemos todos daqui e que provavelmente nunca mais veremos este lugar.
     – Isso o deixa triste?
     – Triste? Bobagem! Separar-se dos amigos é uma tristeza. Um lugar é só um lugar. – Olhou para os mapas sobre a mesa. – E Arrakis é só mais um lugar.
     – Foi meu pai quem mandou você aqui para me pôr à prova?
     Hawat franziu o cenho: o menino era tão observador. Ele assentiu.
     – Está pensando que teria sido melhor se ele tivesse vindo pessoalmente, mas você sabe como ele anda ocupado. Ele virá mais tarde.
     – Andei estudando as tempestades de Arrakis.
     – As tempestades. Sei.
     – Parecem bem feias.
     – Feias é pouco. Essas tempestades se formam numa extensão de seis ou sete mil quilômetros de planícies, alimentam-se de tudo o que possa lhes dar um empurrão: força de Coriolis, outras tempestades, qualquer coisa que tenha um tiquinho de energia. Os ventos podem chegar a setecentos quilômetros por hora e carregam tudo o que estiver solto por onde passam: areia, pó, tudo. São capazes de arrancar a carne dos ossos e reduzir os ossos a lascas.
     – Por que eles não têm controle meteorológico?
     – Arrakis tem problemas especiais, os custos são maiores e ainda é preciso contar a manutenção e outras coisas do gênero. A Guilda cobra um preço terrível pelo monitoramento por satélite, e a Casa de seu pai não é uma das mais ricas, garoto. Você sabe.
      – Você já viu os fremen?
     A mente do garoto está atirando para todo lado hoje, Hawat pensou.
     – Provavelmente, sim – ele respondeu. – Pouco diferem da gente dos graben e das pias. Todos usam aqueles mantos volumosos e esvoaçantes. E, em espaços fechados, fedem que é um horror. São aquelas roupas que vestem, chamadas “trajestiladores”, e que reaproveitam a água do próprio corpo.
     Paul engoliu saliva, subitamente ciente da umidade em sua boca, recordando ter passado sede num sonho. Que as pessoas precisassem tanto assim de água a ponto de reciclar a umidade do próprio corpo foi algo que o impressionou com a ideia de desolação.
     – A água lá é preciosa – ele disse.
Hawat concordou, pensando: Talvez eu esteja fazendo isso, transmitindo a ele a importância daquele planeta como inimigo. É loucura ir para lá sem essa advertência em nossa mente.
     Paul ergueu os olhos para a claraboia, ciente de que havia começado a chover. Ele viu a umidade se espalhar no metavidro cinzento.
     – Água – ele disse.
     – Você descobrirá uma grande preocupação com a água – Hawat disse. – Por ser filho do duque, nunca a terá em falta, mas verá a seu redor a pressão que a sede exerce.
     Paul molhou os lábios com a língua, rememorando aquele dia, uma semana antes, e o ordálio com a Reverenda Madre. Ela também havia dito alguma coisa sobre privação de água.
     – Você conhecerá as planícies fúnebres – ela dissera –, os ermos desabitados, o deserto onde nada vive, exceto a especiaria e os vermes da areia. Vai pintar as pálpebras para reduzir o fulgor do sol. Por abrigo passará a entender um buraco protegido do vento e longe da vista. Vai viajar a pé, sem tóptero, nem carro terrestre, nem montaria.
     E Paul se vira cativado mais pelo tom da voz dela – monótona e vacilante – do que por suas palavras.
     – Quando você for viver em Arrakis – ela dissera –, khala, a terra será um vazio. As luas serão suas amigas; o sol, seu inimigo.
     Paul percebeu a aproximação de sua mãe, que tinha deixado seu posto de vigia junto à porta. Ela olhou para a Reverenda Madre e perguntou:
     – Não vê nenhuma esperança, Vossa Reverência?
     – Não para o pai – e a velha acenou para que Jéssica fizesse silêncio, depois baixou o olhar até Paul. – Grave isto na memória, rapaz: um mundo é sustentado por quatro coisas... – ela ergueu quatro dedos nodosos – ... o conhecimento dos sábios, a justiça dos poderosos, as preces dos justos e a coragem dos bravos. Mas tudo isso de nada vale... – ela cerrou o punho – ... sem um governante que conheça a arte de governar. Faça disso a ciência de sua tradição!
     Uma semana tinha se passado desde aquele dia com a Reverenda Madre. Só agora ele começava a registrar integralmente suas palavras. Sentado na sala de treinamento com Thufir Hawat, Paul sentiu uma pontada aguda de medo. Olhou para a carranca confusa do Mentat diante dele.
     – O que foi que o distraiu agora? – Hawat perguntou.
     – Você conhece a Reverenda Madre?
     – A bruxa Proclamadora da Verdade do Imperium? – os olhos de Hawat se animaram, interessados. – Eu a conheço.
     – Ela... – Paul hesitou, descobriu que não conseguiria contar a Hawat sobre o ordálio. As inibições eram profundas.
     – Sim? O que tem ela?
     Paul inspirou fundo duas vezes.
     – Ela disse uma coisa – fechou os olhos, recordando as palavras, e, quando falou, sua voz assumiu inconscientemente um pouco do tom da velha: – “Você, Paul Atreides, descendente de reis, filho de um duque, você tem de aprender a governar. Algo que nenhum de seus ancestrais aprendeu”. – Paul abriu os olhos e disse: – Isso me enfureceu, e eu disse que meu pai governava um planeta inteiro. E ela disse: “Ele o está perdendo”. E eu disse que meu pai tinha ganho um planeta ainda mais rico. E ela disse: “Ele o perderá também”. E eu quis correr e alertar meu pai, mas ela disse que ele já tinha sido alertado... por você, por minha mãe, por muitas pessoas.
     – É bem verdade – Hawat murmurou.
     – Então, por que estamos de partida? – indagou Paul.
     – Porque o imperador assim ordenou. E porque há esperança, apesar do que disse aquela espiã-bruxa. Que mais brotou dessa antiga fonte de sabedoria?
     Paul olhou para sua mão direita, apertada num punho fechado debaixo da mesa. Lentamente, ele forçou os músculos a relaxar. Ela me impôs alguma restrição, pensou. Como?
     – Ela pediu que eu lhe dissesse o que era governar – Paul disse. – E eu disse que era dar ordens. E ela disse que eu tinha que desaprender algumas coisas.
     Nisso ela foi certeira, não há dúvida, Hawat pensou. Ele fez um gesto com a cabeça, para que Paul continuasse.
     – Ela disse que um governante precisa aprender a persuadir, e não a obrigar. Disse que ele tem de servir o melhor café para atrair os melhores homens.
     – Como ela acha que seu pai atraiu homens como Duncan e Gurney? – Hawat perguntou.
     Paul deu de ombros.
     – Aí ela disse que o bom governante tem de aprender a língua de seu mundo, que é diferente para cada planeta. E eu achei que ela queria dizer que não se falava galach em Arrakis, mas ela disse que não era nada disso. Disse que estava falando da língua das pedras e das coisas vivas, a língua que não se escuta apenas com os ouvidos. E eu disse que era isso que o dr. Yueh chamava de Mistério da Vida.
Hawat deu uma risadinha.
     – Qual foi a reação dela?
     – Acho que ficou irritada. Disse que o mistério da vida não era um problema a ser resolvido, e sim uma realidade a ser vivida. Daí citei a Primeira Lei dos Mentats: “Não se pode entender um processo interrompendo-o. O entendimento precisa acompanhar o fluxo do processo, tem de se juntar a ele e fluir com ele”. Isso parece tê-la deixado satisfeita.
     Ele parece já estar superando, Hawat pensou, mas aquela bruxa velha o assustou. Por que ela fez isso?
     – Thufir – Paul disse –, Arrakis será tão ruim quanto dizem?
     – Nada pode ser tão ruim – Hawat respondeu, forçando um sorriso. – Veja os fremen, por exemplo, o povo renegado do deserto. Numa aproximação de primeira ordem, digo-lhe que há muitos, muitos mais deles do que o Imperium desconfia. As pessoas vivem lá, rapaz: um grande número de pessoas, e... – Hawat levou um dedo magro e forte a um dos olhos. – ... elas odeiam os Harkonnen com um fervor sanguinário. Não deixe escapar nem uma palavra sobre esse assunto, rapaz. Só estou lhe contando isso porque sou assistente de seu pai.
     – Meu pai me falou de Salusa Secundus – Paul comentou. – Sabe, Thufir, pelo que ouvi, é muito parecido com Arrakis... talvez não tão ruim, mas bem parecido.
     – Não sabemos de fato como está Salusa Secundus hoje em dia – Hawat disse. – Só como era tempos atrás... em grande parte. Mas, pelo que se sabe... você tem razão.
     – Os fremen irão nos ajudar?
     – É uma possibilidade – Hawat se levantou. – Parto hoje para Arrakis. Por enquanto, trate de cuidar bem de si mesmo para este velho que tem tanta afeição por você, hein? Dê a volta, como o bom garoto que é, e sente-se de frente para a porta. Não que eu acredite haver algum perigo no castelo: é só um hábito que quero ver você desenvolver.
     Paul ficou de pé, contornou a mesa.
     – Você vai hoje?
     – Hoje, e você seguirá amanhã. A próxima vez que nos encontrarmos será sobre o solo de seu novo mundo. – Ele agarrou o braço de Paul pelo bíceps. – Mantenha o braço do punhal sempre livre, hein? E seu escudo com a carga completa. – Ele soltou o braço, bateu de leve no ombro de Paul, girou nos calcanhares e caminhou rapidamente até a porta.
     – Thufir! – Paul chamou.
     Hawat se virou, ocupando a porta aberta.
     – Não se sente de costas para nenhuma porta – Paul disse.
     Um sorriso se espalhou pelo rosto velho e enrugado.
     – Nunca, rapaz. Pode contar com isso. – E ele saiu, fechando suavemente a porta.
     Paul sentou-se onde Hawat estivera, pôs os documentos em ordem. Mais um dia aqui, ele pensou. Deu uma olhada ao redor da sala. Estamos de partida. A ideia de partir, de repente, era mais real para ele do que até então. Lembrou-se de outra coisa que a velha havia dito sobre um mundo ser a soma de muitas coisas – o povo, a terra, as coisas vivas, as luas, as marés, os sóis –, a somatória desconhecida chamada natureza, uma totalidade vaga, sem a menor noção do agora. E ele se perguntou: O que é o agora?
     A porta em frente a Paul abriu-se com estrondo, e um homem feio e bexiguento a atravessou aos trancos, precedido por um punhado de armas.
     – Ora, Gurney Halleck – Paul chamou –, você é o novo Mestre de Armas?
     Halleck fechou a porta com um golpe de calcanhar.
     – Você preferia que eu estivesse aqui para brincar, eu sei – ele disse. Deu uma olhada na sala, notando que os homens de Hawat já a tinham esquadrinhado, verificando tudo, tornando-a segura para o herdeiro de um duque. Os discretos sinais combinados estavam em toda parte.
     Paul observou o homem feio e cambaleante colocar-se novamente em movimento e virar na direção da mesa de treinamento, com uma braçada de armas; viu o baliset de nove cordas pendurado ao ombro de Gurney, com a multipalheta entretecida nas cordas, perto da ponta do braço do instrumento.
Halleck largou as armas sobre a mesa de exercícios e as enfileirou: as rapieiras, os punhais, os kindjais, os atordoadores de carga lenta e os cinturões-escudos. A cicatriz de cipó-tinta em sua mandíbula se contorceu quando ele se virou, lançando um sorriso para o outro lado da sala.
     – Nem sequer me diz um bom-dia, seu diabinho – Halleck disse. – E que bicho você mandou morder o velho Hawat? Ele passou por mim, no corredor, como se fosse ao funeral do inimigo.
     Paul sorriu. De todos os homens de seu pai, era de Gurney Halleck que ele mais gostava, conhecia a rabugice e a malícia do homem, seus humores, e pensava nele mais como amigo do que como mercenário.
     Halleck tirou o baliset do ombro e começou a afiná-lo.
     – Se não quer falar, não fale – ele disse.
     Paul se levantou, atravessou a sala, dizendo em voz alta:
     – Ora, Gurney, você vem preparado para a música quando é hora de lutar?
     – Então hoje, para os mais velhos, nada de papas na língua? – Halleck disse. Ele experimentou uma das cordas do instrumento, aprovou com a cabeça.
     – Onde está Duncan Idaho? – Paul perguntou. – Ele não deveria estar me ensinando o uso das armas?
     – Duncan foi conduzir a segunda leva a Arrakis – Halleck disse. – Só restou a você o pobre Gurney, que saiu há pouco de uma peleja e está louco por música. – Ele tocou outra corda, escutou-a, sorriu. – E foi decidido em conselho que, sendo você um combatente tão medíocre, era melhor lhe ensinar o ofício da música, para que não desperdiçasse totalmente sua vida.
     – Talvez seja melhor me cantar uma balada, então – Paul disse. – Quero me certificar de como não fazer isso.
     – Aaah, rá! – Gurney riu. Começou a tocar “Garotas galacianas”, e sua multipalheta era um borrão sobre as cordas enquanto ele cantava:

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