Parte I: Expectativas e realidades - Capítulo 1

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Antes de mais nada, deixe-me esclarecer uma coisa: isso em suas mãos não é um livro. Esqueça a aparência do objeto. Diante de você está um portal para uma outra dimensão. Uma dimensão controlada por uma criatura ancestral capaz de dominar a sua mente e controlar o que você vê e sente. Tome cuidado, ela pode te mostrar coisas que você quer muito ver… e outras que o farão desejar arrancar os olhos das órbitas. Agora, com essa informação bem frisada, deixe eu me apresentar: muito prazer, me chamo Lucy Baker e essa é a minha história…

Devia ser por volta das 10h da manhã quando o ônibus parou no velho posto de gasolina à beira da estrada, bem onde ela se dividia entre o caminho que seguia para Albany e a estrada que levava para a pequena cidade onde eu nasci. O dia estava ensolarado e o vento soprava suavemente entre as árvores, tornando o clima bem agradável, exceto pelos homens mal-encarados que frequentavam o posto e pelo trânsito caótico do qual finalmente iríamos nos afastar. 

Allyie, minha melhor amiga na época, e eu descemos do ônibus depois de quase duas horas de viagem com as bundas dormentes. Ela alongou as pernas como fazia antes das aulas de dança enquanto eu observava a estrada de casa com uma ansiedade crescente.

— Ótimo! — de repente Allyie exclamou atrás de mim. — Hora de comer!

Ela surgiu do meu lado e ergui a cabeça para encará-la com os olhos arregalados.

— O quê? — perguntei. — Você não está pensando em comer lá?

Apontei direto para o posto e logo percebi olhares de estranhamento de alguns homens. Rapidamente encolhi o braço, cruzando-o sobre meu peito e virando de costas. Allyie apenas riu de mim, como sempre, fazendo-me ficar vermelha.

— Não, é claro que não, fique calma. Eu também não conseguiria ficar um minuto lá dentro, só o cheiro aqui de fora já está me matando.

Então ela puxou a mochila que carregava nas costas, tão colorida quanto as tranças de arco-íris que ela usava, e tirou de lá um saco de salgadinhos.

— Aponte o caminho para “Johnville”, comandante!

— É Johnsonville! — corrigi.

— Tanto faz! Esse lugar nem existe mesmo!

Eu já tinha começado a andar e apenas me virei para gritar que o lugar existia sim. Foi lá onde eu cresci e onde minha mãe ainda morava. Aliás, ela era o motivo de termos tirado o final de semana de folga do nosso trabalho de meio período em NY para ir até ali.

Nas últimas semanas eu havia tido pesadelos horríveis que me deram uma sensação ruim sobre a segurança da minha mãe e, para ajudar, ela nunca atendia minhas ligações, então decidi visitá-la. Allyie não gostara da ideia, mas prontamente se dispôs a vir comigo, para o caso de algo ter acontecido ou de algo acontecer enquanto eu estivesse lá, o que me confortava muito.

Nós continuamos com nossa caminhada enquanto Allyie comia seu salgadinho e eu apoiava a mão sobre Nascha, o colar que herdei de minha avó. Sim, o colar tinha um nome, depois te explico... Ele era uma peça antiga com uma grande pedra branca no centro e algumas outras pedrinhas ao longo do cordão, bem cafona, pesado e desconfortável de usar, mas eu não conseguia me separar dele.

A estrada estava bem pouco movimentada. Do lado esquerdo havia muitas árvores e, atrás delas, um rio seguia seu curso. Ao lado direito, casas sem portão e com gramado verde surgiam a cada passo, mas iam se tornando cada vez mais velhas e escassas, até que nós víamos apenas ruínas e árvores. Cantávamos uma música para ajudar no ânimo, quando surgiu uma placa de “animais na estrada” e Allyie gritou:

— Lucy! — ofegante da caminhada, enquanto segurava uma garrafa d’água, ela disse: — Você sabe que quando surge esse tipo de placa é por que estamos no meio do nada né?

Eu apenas ri, pois também estava cansada e a ansiedade batia forte quando finalmente vi ao longe a placa da entrada da minha cidade.

Nos aproximamos da placa e Allyie começou a vasculhar em sua mochila até encontrar o seu xodó: um Iphone 4 recém comprado. Meus olhos rolaram na hora, pois eu sabia o que aquilo significava.

— Nem adianta fazer essa cara, mocinha! — ela logo me repreendeu. — Claro que temos que tirar uma foto aqui para provar para o pessoal da escola que esse lugar realmente existe!

A contragosto, me aproximei. Allyie me abraçou e sorriu, fazendo pose, enquanto tentei usar meus cabelos para ocultar o tapa-olho que cobria meu olho esquerdo. Mas na hora da selfie, surgiu uma notificação de bateria.

— Droga! — ela xingou. — Mas eu nem mexi nele para poupar bateria…

Deixei minha amiga frustrada para trás, um pouco satisfeita por não ter que tirar foto alguma. Porém, conforme observava as casas logo na entrada da cidade, notei algo estranho. Ergui a borda do tapa-olho para ter certeza de que enxergava direito, mas como o sol o irritava muito, cobri novamente e usei apenas meu olho direito.

A pequena cidade tinha sua avenida principal pontilhada de casas de madeira típicas do interior e lojinhas, mas suas cores eram muito vivas, como se tivessem sido recém pintadas. Um parquinho com gramados verdejantes e a igreja, mais à frente, contavam com brinquedos e até um sino novinhos. A estrada com suas linhas brancas, as calçadas... tudo parecia limpo e intocado, como em um set de TV. Com certeza não era a Johnsonville que me lembrava de ter deixado para trás.

— Nossa… — exclamei. — Parece até que estou sonhando…

Olhei para trás em busca de apresentar a cidadezinha onde eu cresci à minha amiga, e dizer que além de ela existir mesmo, se encontrava linda como nunca. Mas assim que me virei, meu corpo todo tremeu em um arrepio congelante.

Allyie havia sumido…

Eu estava completamente sozinha...

Olho da Lua - As memórias esquecidas de Lucy Baker (Parte I)Onde histórias criam vida. Descubra agora