Já não basta esse dia de merda, que amanheceu dando tudo errado, agora, na reunião mais importante do ano, sim, aquela que eu ia ao banco conversar sobre o financiamento de um novo prédio de odontologia que eu estava sonhando em abrir, que eu estou atrasado, a babá que eu lutei anos para aceitar que eu precisava de uma, resolve ficar doente.
- Se eu faltar a essa reunião vou perder tudo - berro ao telefone - você precisa arrumar outra babá para cuidar da minha filha!!
- Desculpe Sr mas não temos nenhuma outra babá disponível no momento.
- Como assim não tem? Ah que se danem! Nunca mais vou contratar esse serviço de merda de vocês!
Eu estou fazendo uma cena no café! Todo mundo está olhando para mim e eu nem ligo. Minha vida não é da conta de nenhum deles. Respiro fundo e me viro de lado:
- Luna o papai...
Mas ela não está aqui. Que pai de merda eu sou, que nem percebo quando minha filha sai? Levanto desesperado, passo a mão nos cabelos, respiro fundo e sigo por esse lugar lotado de pessoas que não tinham que fazer e vem comer bolo e queijo quente. Poxa vida, eu devo ter assustado a minha filha com o meu mau humor.
Hoje em especial é um dia muito difícil. É o meu aniversário. Dia que pedi a Anna em casamento. Eu não era uma pessoa que costumava comemorar meus aniversários, mas ela mudou tudo.
Finalmente acho a Luna conversando com uma moça. Não parece ter mais de vinte e cinco, chutando alto mesmo. Ela é jovem e parece cansada, mas mesmo assim está sendo gentil com a minha filha loira e falante. Reconheço ela da faculdade, acho, me parece familiar de algum modo.
- Ei papai, eu vim mostrar a Katy e a Cindy pra ela. E ganhei um pirulito de chocolate, mas ela me pediu para guardar e te perguntar se eu poderia comer. O nome dela é Alicia, mas todo mundo chama ela de Aly.
Eu havia notado quando ela entrou. Parecia muito aborrecida e perdida, triste, derrotada. Mas talvez ela só esteja cansada. Acho que todos os caras notaram ela. A garota é linda, com os cabelos castanhos escuros e olhos verdes. Observo as duas interagindo como se fossem velhas conhecidas e dou um pigarro.
- Então Leticia, é um prazer conhecê-la.
- É Alicia.
- Que seja. Vamos filha.
Vejo a garota revirar os olhos coma minha grosseria. Penso em pedir desculpas, mas estou tão aborrecido com o desenrolar do dia que não consigo.
- Você não me disse seu nome. – ela continua, insistindo com um sorriso.
- É Dr. Thalles Maschietto. E estou atrasado.
- Advogado ou medico?
Deixo escapar uma risada com deboche. Eu não queria ser assim, mas a vida me bateu tanto que imagino que tem uma pedra no lugar do meu coração.
- Dentista. Especialista em cirurgias de reconstrução da face, especialista em ortodontia, mestre em bucomaxilofacial e cursando um doutorado. Nem todo doutor é advogado.
Ela nem liga.
- Ah, entendi. Eu curso medicina.
Olho ela de cima a baixo. Tão pequena pra ser medica. Mas tamanho nunca foi documento, então só suspiro um legal bem baixo.
Ela não se abala com a minha brutalidade. Eu já estava virando de costas, pensando em procurar uma loja de brinquedos para deixar a Luna lá, quando a garota se aproxima novamente:
- Sabe, eu posso ficar com a Luna para você. Tudo bem precisar de ajuda as vezes, e além do mais você está atrasado.
Viro impaciente. A Luna parece feliz com a situação, aperto a mão dela e a olho feio. A alegria acabou.
Quase respondo que eu não preciso que ela banque a terapeuta realista, mas me contenho.
- Mas eu nem conheço você Patrícia.
- É Alicia. Tem razão seu babaca. Desculpe eu tentar ser uma pessoa legal em um dia de chuva e ser solidária tentando ajudar uma criança, porque não é por você a ajuda, é pela Luna! Você não merece ganhar nem uma flor amassada.
Abro a boca, mas a garota não para de falar; e isso está me dando nos nervos.
- O que vai fazer? Deixar a menina em algum shopping, naqueles parques temáticos em plena segunda feira que não tem uma criança lá e as monitoras só ficam no celular, e você ficar torcendo para ela não se sinta sozinha e não chore? Você é um bunda mole mesmo!
Ela vira de costas. Eu retruco:
- Como vou saber que você não é uma sequestradora de criancinhas Alice?
Ela bufa e começou a rir.
- Você é um coitado mesmo Thalles - ela disse meu nome meu nome alto e com todas as letras - Meu nome é, ah! Dane-se o meu nome. Eu já vou indo.
A Luna abre o maior choro.
- Não papai! Não me deixa de novo naquele shopping, de novo não! Por favor!
A garota se vira. Ela está me irritando. Olho no relógio, eu estou, de fato, atrasado agora.
- Quanto você cobra pelo serviço de babá?
- Eu não sou babá.
- Então por que quer ficar com a minha filha?
- Pra começar, seu terno está amassado, a ponta da sua gravata está suja de café, parece que tem um ninho no seu cabelo por causa da sua mania de puxar os cabelos quando está nervoso, suas olheiras estão fundas, a barba está grande, então definitivamente algum ser humano decente precisava ajudar você. E pelo modo como olha o relógio você está muito atrasado. Então sou eu ou o shopping, que está a quinze minutos daqui, mais o tempo que você vai demorar pra descer e deixar ela e sair de novo, vai te custar uma boa meia hora, e além disso, a Luna não quer em ir.
Ela tira um documento do bolso e me dá.
- Toma, é o meu RG. Qualquer coisa você leva na polícia. Eu moro na rua de trás daqui do café, edifício torres, apartamento 4.
Respiro fundo. Quando foi que eu comecei a andar tão desarrumado? Estou eu tão mal assim?
Eu pego o documento dela, é a mesma pessoa que está a minha frente na foto do RG.
Ela não vai sequestrar a minha filha. Eu sei disso. Sei porque ela também usa uma camisa social com a insígnia de medicina, uma calça branca e tem uma bolsa com o mesmo bordado da camisa. Tem um livro caríssimo de cirurgia aberto em cima da mesa. Nenhum sequestrador se daria tanto trabalho por uma criança.
- Olha. Me desculpa mesmo. – eu estou me sentindo completamente sujo e envergonhado – eu não sei que horas eu volto, minha reunião era as dez – digo olhando o relógio dar dez e vinte – e se der certo tenho que levar eles em um imóvel e depois tenho um paciente marcado catorze e trinta.
Eu me sinto derrotado por precisar de ajuda, sou assim desde que a Anna se foi.
- Tá tudo bem, eu já tive aula hoje, foi uma prova. Então só amanhã.
Dou um beijo na testa da minha filha. Me sinto estranhamente calmo. Aperto a mão dela e saio.
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Era uma vez, você
RomanceAlícia é uma quase médica que saiu recentemente de um péssimo relacionamento com marcas horríveis. Thalles é um dentista que perdeu um grande amor e nunca se recuperou disso, pelo contrário, quer cuidar da sua filha e viver em paz. Em um dia muito e...