O cheiro dos incensos que acendemos na madrugada de uma sexta-feira chuvosa em fevereiro não sai da minha mente. Talvez hoje em dia eu admita que você sempre esteve certo, e que o de lavanda era mais gostoso que o de rosas vermelhas, mas o último citado era o mais barato da vitrine então eu não havia outra opção a não ser levar ele de presente pra você.
Provavelmente eu teria dinheiro sobrando na carteira se não tivesse gastado minhas últimas notas em maços de cigarros baratos da primeira marca que eu encontrei naquele bar que ficava na esquina da minha casa. Não era uma surpresa que eu não conseguia administrar o meu salário mensal. Aquela espelunca que chamavam de lanchonete não tinha mais que 30 clientes por dia e o cheque que eu recebia no fim do mês era bem humilde, para não usar outras palavras.
Eu não precisava mais me identificar pro porteiro, ele já sabia até as nossas datas marcadas, e passar pela porta do seu apartamento era como cruzar a fronteira de paraíso inominável. Minha última lembrança daquele dia foi acordar deitado com a cabeça em suas pernas, que estavam esticadas porque você estava encostado na parede. Seus dígitos adormecidos se posicionavam em meus cabelos como se estivessem acabado de acariciar os fios loiros. A posição denunciava o que havíamos feito na noite anterior, de conversas pessoais e toques intrusivos, adormecemos em um passo de mágica, naquele clima confortável, como se fossemos amigos próximos.
Todos os momentos não foram em vão. Eu me dediquei a cada parte de você e criei uma utopia na qual tínhamos o mais estável dos relacionamentos duradouros. Foi você que eu escolhi, o único com quem eu estava dançando em uma rua vazia do bairro mais lotado dessa cidade, sem sapatos, eu olhei pro céu e estava bordô.
Tudo o que eu via era um borrão com branco e preto mesclados. Tudo o que eu sentia era vermelho ardente, na sua tonalidade mais violenta. Tudo me remetia a essa cor, a essa paixão. Em como era a mancha que ficou na minha camisa em que você derrubou vinho, enquanto cambaleava bêbado pela casa e me dirigia as palavras mais impensadas, ou em como o sangue escarlate de todo o meu corpo aceso parecia se juntar em uma só mancha e correr até as minhas bochechas.
Não fiz questão de esconder a marca na minha clavícula que você deixou todos eles verem, era chamativa e denunciava o que tínhamos. Em um ato impensado, sua boca ficou marcada no meu corpo e na minha memória. Os lábios que eu chamava de casa.
Agora eu acordo com sua memória sobre mim, toques rudes e vozes intrusas, beijos roubados e a gente nadando no lago do parque central, na noite mais fria do mês. Tudo isso era um legado do caralho, eu não conseguiria deixar no esquecimento. Os olhos que eram os rubis dos quais eu desisti, os espinhos que confundimos com rosas, éramos nós. As danças na nossa cidade natal viraram fatídicas e, afinal, qualquer um se cansaria de dançar um dia. O vermelho ardente virou bordô. Eu te sinto melhor agora que você foi embora, agora que eu te perdi.