A Princesa e O Cavaleiro - Parte 2

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Tudo desaparece, as velas se apagam, o frio me domina e desço infinitamente. Ouço trovões distantes, ouço o assobio do vento e os pingos de chuva batendo nas folhas, nos galhos, no chão, em mim. Sinto a força da água que vem do céu contra mim, mas não consigo me mexer. Eu reconheço o cheiro pantanoso de onde estou, subindo como vapor e névoa ao meu redor.

Então nada mais eu sinto.

Desaparece.

Evanesce.

Mas ainda estou aqui, certo?

Por que eu não fui embora? Por que eu não estou com ele? Há maciez e conforto ao meu redor, calor vindo de fora, então os meus olhos perdem o peso que o prendiam. Posso abrí-los. Estou numa sala e diante de mim há uma lareira com o fogo aceso, onde um homem abaixado põe mais lenha. O barulho dos trovões e dos ventos contra o bosque e contra a casa aumentam. Sinto um pouco de dor no pescoço, porém me parece mais como um torcicolo. Sentei-me devagar olhando em volta.

Dá para perceber que este chalé foi feito à mão, pedaço por pedaço, de maneira artesanal e bem precária, mas sólida e resistente como só as casas de antigamente eram erguidas.

Eu estou trajando o meu vestido listrado e a touca. É diferente. Eu sinto que é diferente. Não é mais o lugar onde eu estava antes. Tem algo no ar ou dentro de mim que me sinaliza que não vivo um sonho e nem um devaneio nos segundos finais da minha morte. Estou aqui de verdade. A textura grosseira do lençol, o barulho seco da palha que enche o colchão, o frio cortante que entra pelas pequenas brechas das paredes e do teto. Tem baldes dispostos sob as goteiras recolhendo água.

O homem parou de atiçar o fogo com uma haste longa de ferro e se virou para mim. Vestia apenas calças, camisão e colete, descalço, e parecia não se importar com o frio. Seus pés estão sujos de lama e ele está secando. Sua pele é branca como neve, seus cabelos são negros como as asas de corvos e seus olhos... são de um vermelho puro sangue. Ele se ergueu do chão num movimento único e elegante. É alto, imponente, mesmo usando roupas simples e sujas, é magnífico.

Num golpe de vista, quando ele foi buscar uma jarra e um copo numa mesa, eu vi num canto perto da lareira um enorme baú de madeira e couro e sobre a tampa descansava uma espada embainhada cuja ponta da empunhadura pendia uma corrente até o chão e, em cima da bainha negra, reluzia como uma joia rara o Elmo de Prata, esculpido para imitar um rosto horrível.

Sinto em cada osso do meu corpo que é ele.

Só pode ser ele.

-Elmo de Prata... - sussurrei quando chegou perto para me dar o copo com água. Tomei um gole para engolir o bolo que fecha a minha garganta. Quero chorar, mas não consigo. Ele me olhava do alto, das sombras que os seus cabelos formavam ao redor do rosto másculo e magro, muito magro. Ele se sentou na beirada da cama, dando-me espaço.

-Perdão?

-Eh... - se isso for um sonho, por favor, que eu não acorde nunca. - Eh... Você é o Elmo de Prata? - ele discretamente fitou o objeto sobre o baú e depois o meu rosto. - Não é?

-Eu tenho um elmo com adornos de prata, mas não é assim que me chamo.

-Me desculpe. Sua fama o precede. - tentei me arranjar da melhor maneira possível. Não sei o que me aconteceu durante esta noite, como eu vim parar nesta época, ao lado dele, mas estou aqui. Eu realmente estou aqui. - De onde eu venho - minha voz soa embargada, falha. Bebo mais água. -, as pessoas te chamam assim. Por conta do seu capacete. - apontei para ele.

-Ah, claro. Aos 15 anos, eu tive um amigo curioso na Sétima Cruzada. Chamávamos ele de Peter Caolho porque ele perdeu um olho na primeira batalha. Era fácil reconhecê-lo por conta... do olho. - apontou para os seus próprios. Espera. Sétima Cruzada? Isso foi em 1242, mas está escrito 1695 na lápide. Não faz sentido. - E tinha o Pequeno Paul Perna Presa. - acabou rindo de si mesmo.

Contos para Não Ler no EscuroOnde histórias criam vida. Descubra agora