não sobrou nada

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se flores pudessem falar tenho certeza de que os narcisos que te enviei pelo correio cuspiriam sangue na sua cara, porque as palavras evaporaram e o abstrato não tão facilmente toma forma depois de tanto repetir eu-te-amo-para-sempre e fingir não estar sendo baleada porque acha que não precisa de um colete à prova de balas e é moldada por células de aço apáticas, mas só está soterrando a melancolia poética no cacto da varanda e quando ele se desbota há indignação mas não é porque ele não precisa ser tão bem cuidado que deixa de ser a porra de uma espécie que precisa ver água de vez em quando para não esquecer o que é.

mamãe não entende e agora a encontro em corpos mais jovens semelhantes que vão me prometer um lar, o que é diferente da casinha vazia com o papai violento que vai destruir e mimar em um ciclo vicioso. se flores pudessem falar eu te compraria girassóis e esperaria que eles te aquecessem de uma maneira que eu não consigo, sem se importar se é verão ou inverno, que as pétalas te fizessem lembrar de como você riscou um fósforo no meu coração (e eu o apaguei antes que queimasse), de como eu te preservei e que te observarei de longe brilhar como um girassol porque eu sou um risco para a harmonia, para nuvens fofas e beijos de algodão doce, porque eu só sei segurar suas mãos se eu não pensar em como dói ter apenas a metade de um coração.

se flores pudessem falar eu te daria rosas vermelhas e esperaria que eu não tivesse destruído seu romantismo e elas te amassem no tom mais rubro.  guarde meus barquinhos de papel e não deixe que derretam na correnteza, porque eu sei que vai querer vê-los até que a água dobre a esquina já que não sabe onde eles vão parar e tem medo de acordar no outono e ver um deles na janela, como se eu ainda existisse no seu planetinha particular. e eu existo, mas sou só um espírito intocável agora.

 eu te daria toda a melanina dos meus olhos para que os carregassem contigo quando a noite despontar e não ter meu colo quente para encaixar a cabeça. eu levantaria de madrugada para ferver seu café quente antes que acordasse porque sei que você só sabe o que são sentimentos frios.

quando for a última vez que te beijarei às meia noite, cole minha testa na tua e me faça ficar. mas não tem como permanecer em algo que nunca me pertenceu, e agora eu te colocarei no menor porta-retrato da minha coleção porque assim não terei que sentir o punhal que enfiei na costela esquerda para que não sangrasse em ti.

mas você nunca saberá disso, não tanto quanto eu queria.

se flores pudessem falar, eu te compraria cravos cor-de-rosa em sinal de gratidão e esperaria que eles se desculpassem em meu lugar. eu nunca fui boa com despedidas, principalmente porque eu nunca quis me despedir. encontre outra pessoa. que ela te transborde e não tenha que jejuar por uma semana para conseguir te encher até a metade.

eu te daria todas as velas do mundo se eu soubesse usar um isqueiro sem acabar engolindo-o sem querer. sinto muito por ser uma tempestade que respira, você precisa de uma chuva veranil.

não sobrou nada. tanto amor líquido que acabou escorrendo mesmo que fechasse a mão orando para que tivesse mais pele do que tenho.

se flores pudessem falar...mas elas não podem. tudo que me resta é dobrar mais um barquinho, tocar a campainha e torcer para que você não atenda antes que eu consiga correr. debaixo da nossa árvore dos sonhos, vislumbro de canto seus fios de mel grudados na bochecha como se não quisesse os tirar dali a menos que eu retornasse e os afagasse nos nós dos dedos, seus livros de filosofia debaixo das nossas pernas, prometendo infinitos em olhares finitos, e eu nunca quis tanto ter te reservado antes que eu me tornasse meio-humana-meio-fantasma.

meu jardim estará sempre aqui. mesmo que meu moletom esteja vazio em seus braços, mesmo que nossas constelações tenham sido apagadas do céu, mesmo que minhas músicas soem inaudíveis nos seus ouvidos, continuarei regando narcisos, rosas e cravos, porque sei que voltará aqui e os guardará no bolso quando eu não estiver vendo.

não importa quantos corpos acumulados, nada preencherá um fantasma. eu não posso te amar, e é por isso que eu amo flores.


SE FLORES PUDESSEM FALAR.Onde histórias criam vida. Descubra agora