Uma moeda para Caronte

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UMA MOEDA PARA CARONTE

'A vida é uma simples sombra que passa; É uma história contada por um idiota, cheia de ruído e de furor que nada significa' — William Shakespeare

Sem dúvida, eu deveria ter aproveitado a minha vida. Agora, a essa altura, já é tarde demais. Até porque, neste instante, ela não pertence ao meu corpo, a minha casca. Sinto meu estômago embrulhar continuamente e lentamente a repulsa entre minha garganta se torna inevitável, fazendo com que meu suco gástrico defronte a boca. Respiro com força o ar pesado ao meu redor e obrigo assiduamente meus pulmões a trabalharem em ritmo acelerado. As vias aéreas ardem rispidamente enquanto o suor frio percorre as têmporas. Passo rapidamente a mão sobre o pescoço e solto o nó engasgado à extremidade, libertando-me. A dor é pavorosa, potencialmente dolorosa.

Minhas orbes escuras, fixas na vibração negra do céu, deleitam-se com as nuvens espessas que dançam em círculos minuciosos. A quietude inocente de tal clima parece relaxar-me, mas, ao mesmo tempo, anseia querer deixar-me completamente louca. Impulso, é como se estivesse prestes a jogar-me na água negra abaixo de mim. As pernas, hesitantes, trepidam erroneamente na ponte de madeira podre nivelada a meus pés. O remanso e o silêncio, invejados pelo uivo do vento, são rompidos e guiados pelos gritos mórbidos das gralhas de olhos vermelhos, que ecoam ao céu nublado e tempestuoso do lugar. Os sussurros fantasmagóricos das aves tenebrosas conduzem a todos que fazem seu caminho aqui, acima da água negra e abaixo do céu espesso, a todas que oferecem uma moeda para Caronte.

Caronte, o filho da noite, é denominado como uma entidade velha e imortal. Sua função é transportar as almas dos recém mortos até o outro mundo, além do Aqueronte. Mas, estou morta? A cor fúnebre e a deterioração da barca da criatura parecem refletir a história que ninguém é capaz de contar. A brisa gelada esculpe dor em meus ossos e arrepia minha pele, similar a sensação de sentir todo o sangue se esvair do corpo. É como se meu 'eu' simplesmente desaparecesse daqui, de tal realidade estranhamente distorcida. O barqueiro do além, Caronte, empunha seu remo em minha direção, deixando a postos sua forma espectral e sinistra. Seu rosto não é visível, pois o capuz que cobre a extremidade entra em contraste com a neblina e mescla-se com a escuridão do local. O sinistro agora torna-se o meu maior medo, chamando-me como um sussurro doce.

Onde estou? — Meus lábios entreabrem-se em um movimento único e a musculatura de meu rosto parece formigar ao perceber o quão forte está o ranger de dentes. Relaxo a mandíbula por alguns instantes, solto meus músculos e sigo a dança mórbida de meus olhos diante a paisagem. Fixo, finalmente, o fitar curioso e receoso a canoa desobediente do barqueiro, que encontra-se a flutuar irregular na imensidão sobre a neblina. As ondas quebram-se silenciosas ao nada e misturam-se com a espuma que a margem produz e devolve. Pressinto mais uma vez o sopro embriagante em meu corpo e vejo, levianamente, que através do capuz um rosto esquelético e sem expressão habita.

Engulo em seco todo temor e sinto que uma bolha de estresse forma-se em meu interior. Um guizo na ponta da canoa, enferrujado, soa com rispidez, o que faz meus tímpanos doerem e algumas gralhas que descansavam no local levantarem voo apressadamente. O barulho anuncia a viagem que aproxima-se, é hora de embarcar. Entretanto, nego-me a aceitar que tudo que vejo é real, que está acontecendo.

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