I: MAIS UM DIA ETERNO

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     O céu estava bastante estrelado, Ed amava observar cada estrela e constelação. Sentado no seu túmulo, no cemitério em que a sua história de vida teve um fim, não havia nenhuma rosa e muito menos informações de sua vida. Como de todos os mortos, era escrito em suas lápides nome, data de nascimento e data de falecimento. Na de Ed, era um pouco mais informal. Além de não estar escrito seu nome completo, só tinha apenas o ano em que nasceu, que era 1994. O ano de sua morte era representado por um ponto de interrogação. Não havia nem uma foto sequer, apenas uma frase escrita “Volte para nós, querido. Com amor, M.”.
     Ele não se lembrava absolutamente nada de quando era vivo, muito menos, a causa e do ano da sua morte. Não recordava da própria mãe ou da vida que levou. Tudo aquilo era um grande mistério para aquele fantasma perdido e sem origem. A identidade de um fantasma após a morte, é saber como era a sua vida, e aqueles que não sabem, são almas frustradas e sem histórico. Aquilo sempre o feria profundamente. Sentia-se vago e inexistente. Por outro lado, tinha entusiasmo e motivação para descobrir sobre o seu passado. Tinha esperança em algum dia se lembrar de tudo e de ter oportunidade de viver novamente. O que chamava-lhe a atenção em ter uma vida como um ser humano, é ser uma criança. Da pureza, alegria e principalmente a inocência da infância de alguém.
     Esperava ter uma chance de reencarnar algum dia, até porque, o seu maior sonho é se sentir como uma criança se sente. Ed tentou inúmeras vezes visitar bairros e poder ver de perto o cotidiano de alguém. Porém, de todas as tentativas, nenhuma deram certo. De vez em quando, saía escondido de todos e tentava fugir, mas nunca conseguia passar daquele cemitério que ficava longe de sua casa. Haviam guardas para todos os lados, sempre dispostos a capturar alguma alma fujona. Uma vez ou outra, escutava uma voz doce e feminina falando com ele, pedindo sempre para que voltasse.
     Cansado de admirar as estrelas, decidiu ir embora e quis voltar para casa. Morava em um plano astral inferior aos demais, que se chamava Vale das Almas Perdidas. Um lugar para espíritos presos e sem luz em seus caminhos. A maioria deles eram alcoólatras e viciados em drogas, e todas as noites, compareciam em bares e prostíbulos. A sua casa era bastante humilde, feita de madeira que ficava no fim de um beco escuro. O seu lar havia apenas um cômodo que era iluminado por velas, e suas paredes, eram marcadas com vários planos de fuga. Não gostava de morar ali por não se sentir confortável e seguro no meio de tanta negatividade que era acumulada naquele plano astral. Não chegava a ser o inferno completo, até porque, muitas daquelas almas não estavam ali para pagar algum pecado ou castigo.
     A Morte governava aquele lugar e ditava regras para aqueles espíritos andarilhos, sendo assim uma grande tirana e controladora. Era uma presença sobrenatural maligna, que habitava dentro de si o controle de todos os espíritos. Ela nunca libertou uma alma sequer de seus domínios, e nem pretende libertá-las em hipótese alguma. Se alimenta da energia de cada alma que se encontrava naquele vale, deixando-os cada vez mais fracos. Ed não temia aquela entidade, faria o que fosse necessário para escapar das mãos da Morte. Diziam por aí, que todos que tentaram fugir, se transformaram em criaturas descaracterizadas e monstruosas. Assombrações animalescas que vagavam por aí sem sentido e direção.
     Deitou em sua cama e começou a questionar a si mesmo o porquê de estar ali preso e sem nenhum propósito. Enquanto pensava, estava apreciando a incrível dança que as chamas das velas refletiam nas paredes. Elas se mexiam sem parar de um lado para o outro, parecendo que eram sopradas por uma brecha de ar. Onde morava, nada servia de entretenimento para se distrair. Na maior parte dos dias, quando não visitava o seu cemitério no planeta Terra, passava o seu tempo procurando maneiras de passar pela segurança local e finalmente sair daquele vale. Não tinha nem um pouco de prazer em caminhar pelas ruas e becos que faziam daquele lugar assombroso. Muitas ruas não tinham nem um meio elétrico para iluminar por onde alguém andava. Era perigoso, pois nunca se sabia que presença poderia estar te esperando no fim da rua. De tanto pensar e repousar, caiu no sono. Sim, fantasmas descansam. Mas não como os seres humanos, até porque alguns hábitos permanecem após a morte.
     Depois de um curto cochilo, Ed acordou assustado com um som alto vindo de fora. Estava tendo algum tipo de show em algum bar por perto. Levantou curioso para saber onde era, abriu a sua janela e se deparou com luzes iluminando a metros de distância. A curiosidade o fez sair de casa, rapidamente apagou suas velas e seguiu a caminho daquela barulheira. Entrando em ruas e avenidas, de longe enxergava luzes vermelhas, dando para ler perfeitamente o nome do estabelecimento, “Dance Até Morrer!”. Não era um bordel e muito menos qualquer bar, pelo contrário, era uma imensa casa de show recém inaugurada. Chegando no local, dava para escutar a música que tocava, uma mistura de eletrônica e dance bastante envolvente. Entrando naquela casa, esbarrou em fantasmas com roupas mirabolantes e coloridas. O salão estava cheio e escuro, sendo iluminado apenas por lâmpadas neons. Na sua frente, tinha um palco onde o responsável do estabelecimento anunciava em um microfone o nome do grupo que se apresentava naquele momento.
     – Boa noite, almas alucinadas! – gritou – Fiquem com a performance do grupo “Dançarinas de Satan” ao som de Blind Trust do Cabaret Nocturne.    
     E naquele momento, fantasmas dançarinas preenchiam o palco de dança e sensualidade. Ed estava encantado com o que via, nunca tinha visto nada parecido e tão coreografado. Se já viu, não lembrava, mas estava impressionado. Chegou perto do bar, onde encontrava vários alcoólatras agarrados no balcão sempre pedindo mais uma garrafa de gin. Os espíritos não consomiam nenhum tipo de alimento e líquido, mas sugam as energias que há em volta de uma simples bebida. Ed nunca teve um pingo de vontade de se embebedar, muito menos fumar. Tinha uma alma jovem por perto inalando fumaça que uma bituca de cigarro fazia e aquilo estava criando um certo desconforto. Se afastou dali indo direto pra roda de dança, mesmo não sabendo dançar. Vidrado naquele espetáculo que via, nada fazia ele se animar. Estava totalmente parado no meio de um aglomerado de almas elétricas, como se nunca dançaram na vida. Faziam passos de boogie oogie, mexendo os braços e a cabeça.
     O show de dança tinha acabado, e uma banda tinha assumido o palco. O suposto vocalista tinha um estilo punk, usava um lençol preto como figurino, só podendo ver seus olhos e forma do seu cabelo espetado. Começaram o show deles com um solo de guitarra, dando continuidade para um solo de baixo. A bateria estava tímida, diferente dos instrumentos de corda. *Logo em seguida, um som synth deu início à primeira música deles da setlist. Era um cover de uma banda russa chamada “Molchat Doma”, e a música “Sudno” fazia todos vibrarem. Ed não entendia nada o que estava acontecendo, sem nem conhecer a música que era tocada, se afastou da plateia e preferiu assistir de longe. De repente, as luzes se apagaram e lasers verdes iluminavam o público.
     Ed não aguentou aquele tipo de aglomeração, tinha muitas informações num mesmo lugar. Saiu de lá para se refrescar um pouco, vendo que tinha ainda uma galera do lado de fora. Eram almas adolescentes, escondidas atrás de um carro velho enguiçado. Ficou curioso e decidiu ir lá ver o que estavam fazendo, ouviam-se risadas e gritos, parecia que estavam escondendo alguma coisa. Chegando lá, não se surpreendeu vendo um bando de jovens se drogando. Uns estavam sugando a energia que obtinham nas drogas que tinha com eles. Não sabendo exatamente o que era, decidiu perguntar.
     – O que você está usando?
     – Não sabe o nome disso aqui? – respondeu com pergunta dando uma fungada. – Se não sabe, então não queira descobrir.
     – Foi mal, não queria te atrapalhar – se desculpou
     – Deixa ele saber, Timmy. – interviu um outro fantasma presente alí.
     – Se ele perguntou o que é isso, então não é disso que ele está perdido – o jovem tinha jogado fora o resto da droga – Essa não é a sua prisão, rapaz.
     – O que você está querendo dizer? – Ed ficou mais curioso ainda.
     – Nós não estamos mortos, maninho. A Morte que nos prende, faz parte do sistema.
     – Que sistema? – perguntou novamente
     – Ih, começou a viajar! Não existe nenhum sistema, cara – disse um outro companheiro presente – Acabou de bater a onda nele.
     – Então como você explica o fato da gente nunca reencarnar? É o sistema.
     – Como você sabe desse sistema? – Ed interrogava mais ainda tentando achar alguma resposta ou pista das suas questões próprias
     – Quer uma dica? Acorda pra vida, tenta se encontrar.
     – Galera, os seguranças estão vindo! – uma outra alma da roda se preocupou – Guardem as paradas!
     – Sai logo daqui se não quiser ser pego! – gritou para Ed mas não tão alto o anti-sistema, que até então se chamava Timmy.
     Ed saiu às pressas dali como se ele fosse o próprio traficante. Levando junto com ele, dúvidas e mais dúvidas. Não entendeu sequer mensagem subliminar daquele viciado. Conseguindo se afastar mais ainda, diminuiu a sua velocidade e começou a seguir a sua rota de casa. Não parava de pensar no que aqueles fantasmas disseram para ele, tentando encontrar algum fio solto. Queria descobrir o que era aquele sistema, e ao mesmo tempo, saber mais sobre a Morte. Ninguém nunca a encontrou, muitas das vezes, só se ouviam falar sobre ela. Boatos e lendas circulavam de fantasma para fantasma. Não sabia de onde era a fonte e se era verídico, mas dizem por aí que ela vive nas sombras e na escuridão. Talvez isso justifique ter poucos pontos iluminados naquele vale, sendo melhor assim para ela, observar a todos e estar ciente do que acontece.
     Parou no começo do beco e ficou encarando sua casa de longe. Estava tão escuro, que não dava para enxergar quase nada. Um sentimento crescia dentro dele e não fazia ele avançar, alimentando um medo de que não tinha. Pensou muito sobre o tal sistema e no que faria a partir daquele momento, então a sua única decisão foi fugir dali e abandonar a sua única casa. Seguindo caminho para um transportador local, feito para fantasmas viajarem para terra ou para outras camadas espíritas. Geralmente, líderes de aldeias e vales superiores se transportam para resgatarem espírito em outros vales inferiores. Sendo proibido qualquer um usar sem autorização de ir visitar algum familiar que se hospeda em outro lugar ou para visitar a Terra. À caminho do portal, sentiu uma presença seguindo-o cautelosamente, que se escondia toda vez que ele virava para trás dando para ver apenas vultos. Começou a ter pressa sentindo um certo medo, até porque não sabia o que ou quem estava se escondendo. Poderia ser uma assombração, um guarda, um agressor, haviam muitas opções. Entrando em vários becos para ver se despistava, se deparou com uma sombra a alguns passos de distância dele, se assustou e perguntou quem era, mas não respondia. De repente, a sombra se espalhou pelo chão e sumiu na escuridão da rua. Sussurros e barulhos horripilantes faziam com que Ed se tremer de medo de estar ali. Saiu daquele lugar rapidamente, mas sendo perseguido dessa vez, por dois guardas.
     Dois esqueletos que tinham posse de espingardas e correntes para amarrar os prisioneiros. A guarda local tinha encontrado Ed, a alma fujona, que tentava a qualquer custo fugir do Vale das Almas Perdidas. O fujão recuou e deu mais uma volta se tornando um foragido. Os sussurros aumentaram cada vez mais, ficando mais alto e apelativo. Os postes de luz de algumas ruas iluminadas piscavam repetidamente e enfim se apagavam totalmente. Sem ter pra onde ir, decidiu se render e voltar para casa. Mas antes disso, parou os guardas e questionou o porquê daquela perseguição.
     — Parado! — gritou os guardas
     — Parados! — Ed gritava em seguida
     — Quem? Ele ou eu? — um guarda perguntou sem reação
     — Você e ele também.
     — Mas nós falamos primeiro, seu fugitivo! — apontou suas armas para Ed
     — E por qual motivo eu estou sendo perseguido por vocês, senhores? — levantou as mãos para cima
     — Segundo a lei, não devemos dizer ordens de nossos superiores sem que algum delegado esteja presente.
     — E segundo a lei, para ser perseguido, eu tenho que ter indícios de ter feito algo fora da lei.
     — Mas não queremos prendê-lo, senhor. Queremos que você nos acompanhe até a sua casa.
     — O que tem a minha casa? — perguntou estava sem entender
     — Alguém te espera lá.
     Acompanhado pelos guardas, Ed não entendia muito bem o que estava se passando naquele momento. Tinha uma ideia de quem estaria lhe aguardando, com receio de estar cero, estufou o seu peito e seguiu em frente. No caminho, almas que moravam na rua se escondiam com medo, dentro de buracos no chão e atrás de rochas. Apenas fogueiras iluminavam aquele beco escuro, dando para enxergar nada que não tivesse sido iluminado por fogo. Passando perto da casa de show que tinha ido mais cedo, reparou que tinha fantasmas indo embora para casa e uns bêbados na porta. Estava escancarado para Ed naquela hora, que não saía ou frequentava esses lugares, o pós de cada aventura que aquelas almas almejavam. Não tinha um bar ou outro tipo de estabelecimento com uma energia mais leve e diferente daquilo ali. Só se abriam bares, bordeis e casas de shows.
     Chegando em sua casa, abriu sua porta e logo acendeu sua vela para poder enxergar quem estava esperando por ele, que até então, não tinha sido revelado. Ed perguntou querendo saber onde estava o "alguém", então os guardas assopraram a vela e apontaram para o canto do cômodo. Uma sombra se criava na parede inteira, mostrando formas de braços e dedos afiados. Um ruído saía do canto escuro da casa, um som grave que se parecia com a de um alce.
     – Então é você, né? – perguntou o dono da casa
     – Você sabe quem eu sou?
     – Eu sei que é você, Morte! – ao acender sua vela, uma imagem perturbadora da sombra era revelada – Não se esconda da luz! Não tenho medo de você, maldita!
     – Você nunca vai conseguir escapar, minha pequenina alma.
     – O medo que você tenta colocar em mim, me motiva ter mais coragem!
     – Não quero que tenha medo de mim, Ed. Quero que tenha medo do que você se transformará – a Morte, já revelada, apagou mais uma vez a vela – Não queira estar preso num ciclo de arrependimentos, vagando por aí descaracterizado como se fosse um enconsto.
     – Isso é mentira, você faz parte de um sistema e quer me fazer prisioneiro para alimentar o seu ego!
     – A verdade não é essa. – a sombra se locomovia nas paredes se aproximando cada vez mais de Ed
     – Então qual é a verdade?!
     – Você não pode fugir da sua morte, ela vou até você.
     – Afaste-se de mim! – Ed gritava
     – Não faça isso, pequena alma. Não fuja mais…
    A Morte então, desapareceu na imensa escuridão.

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⏰ Última atualização: Nov 10, 2022 ⏰

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