Valete de espadas

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O calor do verão de 99 tinha pego todos desprevenidos, mas não impedia os jovens de buscar aglomerações até que suas realidade batessem na porta.

Quase amanhecia quando o bairro pareceu finalmente descansar, portas se fechando e carros acelerando eram o som do paraíso para os empreendedores noturnos, porém, para a tristeza de todos a segunda feira tinha chegado e com ela as responsabilidades, as máscaras, os cafés e o 'bom dia' com uma leve rouquidão.

Dentre os perdidos que se encaixavam na situação estava Suzuki akira, no auge dos 35 anos o homem  comemorava mais uma promoção, estava cada vez mais perto do comando da empresa e causava inveja em muitos, mas o que podia fazer? Era dedicado no trabalho, muitas vezes sacrificando noites de sono para melhorar o seu projeto e o dos colegas, além se ser simpático com todos e extremamente galanteador com as senhoras da cozinha, em sua visão ao menos.

Independente do quão sociável era Akira, seu ego não o deixava aceitar ajuda, mesmo em situações idiotas como uma carona durante a madrugada "São só cinco minutos e eu chego no meu apartamento, até amanhã!" Foi o que todos os seus amigos ouviram. Após deixar o próprio carro em casa, se sentindo estúpido, porém, com uma postura de quem não deveria dirigir alcoolizado, ele manteve o sorriso até virar a primeira esquina do clube.

Sozinho, tinha a impressão de estar sendo levado pelo vento, continuava sem pressa enquanto assoviava, pensando em como poderia se recuperar da provável dor de cabeça causada pela noite agitada.

Poucos minutos depois Akira pôde ver seu prédio, a visão de todas as janelas com as luzes apagadas assustavam o homem que durante 16 horas se misturava com dezenas de pessoas, luzes, sorrisos, e trânsito. Odiava o silêncio, a solidão, a brisa natural, mas se opondo a tudo o que acreditava, resolveu dar meia volta e se sentar em um banco a poucos metros do condomínio.

Para o seu alívio a última música ouvida ainda tocava sem filtro nenhum na sua cabeça, e nessa confusão de sons enquanto olhava o bosque a sua frente se lembrava das manhãs em que conversava com a vizinha do 65, que já tinha contado sobre suas caminhadas, e o medo que a senhora sentia em ser assaltada, mas que se tranquilizava ao encontrar as colegas.

Ou talvez sua memória estivesse inventando a última parte, ele falava com tantas pessoas que era difícil guardar informações, e o momento não colaborava.

Akira já podia sentir suas pernas dormentes e se ficasse sentado mais tempo seus braços teriam o mesmo fim. Tomar banho, conversar novamente com a senhora do 67, espera... 65, trabalhar, comprar uma cafeteira, ir pra casa. Eram tantos pensamentos, e ele só queria acordar na sexta.

Tomando coragem para sair do lugar, o homem se apoiou na parte de trás do banco e levantou rapidamente, o que obviamente não foi uma boa ideia levando em consideração o líquido transparente que saiu descontroladamente pela sua boca. A garganta ardendo, a cabeça girando, a luz infernal daquele poste velho alaranjado. Ele só queria dormir. Prestes a chorar como uma criança que não entende o seu corpo ele se senta novamente, mas dessa vez ouve passos atrás de si.

Ele deveria ter olhado? talvez se tivesse ido para casa, talvez se não tivesse sido promovido, se talvez não tivesse bebido, ele teria percebido que o dono dos Passos não tinha derramado bebida em sua camisa "você não devia... molhar os outros, porra... isso é quente" disse akira entre tosses. Mesmo tocando a mancha que nunca saiu de sua camisa, ele não conseguiu entender o que era aquilo, tão quente em sua costa, mas tão frio em suas mãos, era vermelho mas não parecia suco. Sendo uma bebida ou não, doía, e ouvir a risada do ser, com a música da sua cabeça, a vista embaçada, e o reflexo daquela luz estúpida, não o ajudaram a localizar a faca que agora, estava sendo colocada na perna direita de Akira, ou talvez não fosse uma faca, que humano conseguiria fazer isso com uma faca?

O homem estava muito distraído com a sua mão ensanguentada para pensar na aproximação repentina da pessoa misteriosa, que sem reclamações pôde começar o seu trabalho, fraqueza, bebida ou piedade divina fez com que Akira desmaiasse, deixando o artista se expressar.

A manhã finalmente chegou, e com ela as caminhadas matinais da senhora do 65. Exatamente as 06:20 a mulher que não passava dos 55 anos e todos os dias falava com o vizinho do 33 na esperança de conseguir seu número, se encontrava com a irmã e mais duas colegas do condomínio no banco azul, que ficava a poucos metros de sua portaria, quando chegou lá, estranhamente as 06:21 não encontrando ninguém, se deparou com seu banco tão querido manchado de vermelh, a poça que se formou em baixo do assento com um cheiro deplorável, a fez ter certeza que não era uma tentativa de pintar o banco, uma trilha de pingos da mesma cor adentrava a floresta. 06:23, a impaciência atingiu a mulher que resolveu seguir a "trilha".

  Trilha essa que a fez se encontrar com o seu amado, ou o que pareciam ser os seus pedaços, espetados em galhos de uma grande árvore solitária, o pavor foi tão grande em ver a cabeça do homem em destaque naquele quadro, que ela pôde sentir sua calça molhada, a voz foi cortada um nó de desespero, e foi mais que o suficiente para que ela ficasse congelada no mesmo lugar encarando o valete de espadas colocado perfeitamente no que parecia ser o tronco do rapaz que só queria ir pra casa.

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