I - Notícias

368 8 2
                                    

Hemlock nunca fora tão vazio como naquela manhã. O reino comumente habitado pelos mais diferentes tipos, cheio de mercadores sujos e sábios aos farrapos, parecia desértico e hostil, mergulhado em uma estranha calmaria, um torpor que causava apreensão em cada um que conseguia senti-lo. A tensão maculava o famoso estado de agito permanente do reino.

Era comum avistar homens sempre aos brados, comércio sempre muito movimentado, portos sempre cheios de embarcações, das mais humildes as mais pomposas, em outros cantos ouvia-se o grito das lamentações e o choro das crianças. As cidades se esparramavam numa mistura heterogênea. Caos e ordem. Luxo e miséria. Saber e ignorância. Ambos os polos hoje se encontravam mergulhados em silêncio e melancolia.

Naquela manhã, o vento espalhava-se pelas ruelas, trazendo apenas as notícias estranhas, até mesmo os comerciantes estrangeiros não ousavam pisar fora das hotelarias. A apreensão vinha como uma neblina, enervando a vista. Nos sussurros que passavam pela boca de guardas, criadas, vendedores e nobres. Quando o sol chegou ao ponto mais alto do céu, o assunto não era outro. Sempre as mesmas palavras sussurradas, as especulações que se formavam, os olhos e ouvidos atentos a qualquer movimento que trouxesse consigo o prelúdio de uma loucura. Uma retaliação que não vinha. E a frase permanecia ecoando, ecoou por dias a fio, até alcançar os pontos mais escuros e mais extremos do reino.

O rei sumiu.

Não se falava noutra coisa. E tão logo o anúncio era ouvido, as perguntas começavam. Como assim sumiu? O que houve? Em seguida, é claro, discutia-se a linha de sucessão, afinal, não era novidade que Anne Hemlock não queria ver Sebastian, o gêmeo mais velho e herdeiro por direito, no comando. Alguns camponeses seguiam em igual rotina, porém os nobres já se perguntavam o que o futuro lhes guardava.

- Isto é um absurdo! - ao se passar pelos corredores do castelo, a voz de Anne parecia mais rouca e aguda a cada sílaba, estridente e sempre acompanhada de passadas insistentes sobre o assoalho de mogno - Como que meu filho vai a uma caçada e simplesmente nenhum dos incompetentes da guarda real o segue?! Não é para isto que são escolhidos e treinados? Estes guardinhas miseráveis... Apenas outros dos parasitas que temos que aguentar por conta do Conselho.

- Calma - a rainha, com olhos inchados, falou de modo suave, sua voz melodiosa, ainda que ríspida - Estou certa que vão encontrá-lo logo - e a frase soou suficientemente áspera para entenderem que não era um pedido. Era uma ordem.

As duas mulheres consolavam-se, daquele modo que irritava propositalmente os homens na sala. Foi com pouco esforço e com os olhos inchados que conseguiram ficar sozinhas no aposento - o quarto de Elizabeth. A velha e a nova rainha, tia e sobrinha, enxugaram os olhos com as pontas dos dedos e um sorriso idêntico e mínimo nos lábios.

Elizabeth admirava a sogra, em uma cumplicidade digna de mãe e filha, personalidades fortes e determinadas. Não foi à toa que Anne tinha ascendido a sua posição, também não fora à toa que convencera sua sobrinha em casar-se com seu único filho. Com muito custo, discussões, acordos furtivos e palavras sagazes, a velha rainha tinha conseguido o que sempre desejara: o poder do reino em suas mãos, ainda, é claro, que hoje fosse apenas "a mãe do rei", a Rainha Velha, a monarca de ascensão humilde e uma estranha história de amor e tragédia.

As Hemlock tinham os mesmos cabelos negros, o mesmo rosto fino, os olhos em um tom misterioso, entre o mel e o castanho. Elizabeth, entretanto, tinha em sua face lábios fartos, com um belo formato de coração, os quais crispavam suavemente quando ela sorria e marcavam covinhas em suas bochechas. Anne via o despontar de seus primeiros fios brancos, disfarçando-os de todos os modos que conhecia - os quais não eram poucos - tinha um porte altivo, mesmo que fosse pequena se comparada a sua nora, parecia que pondo os ombros para trás e erguendo o queixo conseguia intimidar até o mais forte dos guardas. Ou como as criadas costumavam dizer, eram daquele tipo que ficava bem na corte, mesmo sem o sangue azul.

Forjados em Sangue: A Ascensão das SombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora