Abri a torneira para você passar
(2008)PONTO INICIAL
– Já se decidiu? – Ka, fingindo ter paciência.Sem resposta, ele semi-inclinou a cabeça, fechou a porta, avisando me deixar três dias sozinha, para reflexão profunda. Como se eu quisesse. Saiu do cubículo que teima em chamar de quarto. É prisão. Estou presa no Laos por vontade quase própria, há quatro dias. Não tenho o que fazer, além de decidir se faço a Passagem ou não. Tudo bem, te vejo em três dias, não esquece minha comida, e manda duas canetas porque eu vou escrever.Resolvi escrever para atestar a vida, já que a morte está do outro lado da porta e não fala minha língua. Não é autobiografia, é atestamento. A diferença é enorme. Atestamento é muito mais pretensioso do que uma simples autobiografia. O que atesto vai para testamento juramentado e eternizado, assinatura reconhecida, carimbos oficiais e, se eu tiver sorte, até capa dura.
Atlas é meu nome. Assim que nasci, a primeira coisa que meu pai viu foi um atlas na cabeceira da cama. Está explicado. Até faz sentido com a profissão dele, e com a minha.
Ka é um cientista especializado em mecânica quântica. Pensando em sua postura mais política do que física, eu o colocaria na esquerda radical. Estuda o comportamento dos átomos e partículas, com interesse específico na construção, ou melhor, desconstrução, do Tempo e Espaço. É líder do Instituto Samsara, no Laos, que pesquisa a existência de outros espaços, dimensões, por assim dizer, e o funcionamento do Tempo. Ka desenvolveu um instrumento, a antena frequencímetra, que diz sintonizar a frequência de outras dimensões. Seu próximo passo, a passagem para elas. Eu, a cobaia, que vim parar aqui não sei muito bem como. Em três dias deve dar para contar a história.Sou funcionária do Guia do Viajante VaiBem, empresa familiar fundada pelo meu pai. Avalio, analiso, dou nota e observações ao meu objeto de estudo: hotéis. Ninguém pode saber minha identidade, para não ser tratada com privilégios. A cada hotel, uma nova personagem. Sou aeromoça, sou advogada, sou escritora, sou banqueira, sou dondoca, sou o que eu quiser ser. Ajo como agente secreta moderna.Ao meu irmão cabem os albergues. Trabalhamos separados, mas sempre nos encontramos na casa-base da família, na cidade natal do meu pai. Meu irmão é ponto fixo, minha referência no mundo.
Me sinto estranha com frequência. Invisível, sempre. Passo despercebida, penso não querer atenção. Me escondo porque sinto alguém me perseguindo. Não tenho lugar. Uso fantasias nos hotéis para despistar. E consigo. Sou sóbria da minha loucura.
Vamos lá. A história de como vim parar aqui começa com um telefonema, chamada não identificada. Aproveito para saudar Deus, Oxalá, Budha, Vishnu, Madre Tereza, Mãe Natureza, xamãs, padres, cruzes. Salve as formigas, salve os duendes, salve os gatos, a água, os mendigos, salve o mundo, não custa nada... e, por favor, alguém me salve. Ponto inicial.Chamada não identificada
Dia azul, sem uma nuvem no céu, daqueles que se desconfia. Cheguei à cidade do próximo hotel da lista, duas horas de carro de São Paulo. Pronta para mais uma tarefa
–
avaliar–
e alimentar o Guia do Viajante VaiBem.Abri a porta do quarto, dei o primeiro passo, meu celular tocou, chamada não identificada. Fechei a porta, atendi. Toque já veio desafinado.–
Alô, Atlas?–Sim, sou eu.
–Meu nome é Samantha, com th.
–
Quem?–
Eu... sou muito próxima do seu irmão. Na verdade, sou a alma gêmea dele. Nos conhecemos aqui na Amazônia, há uma semana.–Sei. Como ele está? Faz tempo que não me dá notícias.