A ferida

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Por mais que eu insista em continuar a ter 16 anos, o tempo irá me tomar tudo aquilo com que me importo. Diversas vezes essa semana eu olhei para o espelho e contestei a mudança, inevitável o futuro que seja, eu permaneço com a mente no passado.

Sinto falta dos risos, sinto falta das noites bem dormidas, sinto falta de sentir falta das companhias. Sinto falta de mim, acho que eu me esqueci, e como posso me esquecer? Fui eu mesmo que a tempos atrás lotava diários com palavras, agora me falta letras sobre mim.

Talvez o básico ainda sei dizer. Meu nome é Luan, ainda tenho 16 anos, não sou alto, não sou tão sardento, não sou tão loiro, tenho o nariz fino e longo, tenho manchas grandes na pele, são avermelhadas como tapas mas são de nascença, meu cabelo cobre minha testa e parte das minhas orelhas, minha cor favorita é verde, e meus olhos são verdes afinal.

Eu costumava gostar de muita coisa, mas 2 meses de coma furtaram minha vida, e eu não me recuperei rápido, teve a fisioterapia, a terapia, e lógico o repouso. Não tive notícias da escola, faz 4 mêses que eu não vou, meus amigos mandam cartões, mensagens, me visitam as vezes, mas eu não estou conectado mais com a minha antiga vida, estou que nem um satélite pairando a realidade.

Valentino e Doug, são meus amigos, e eu tentei ficar feliz por eles tentarem me deixar otimista, diziam sempre "Vai dar certo, você vai se recuperar rápido" ou "Cara estamos com saudade". Eu queria falar mas não consigo, em mim só restou silêncio, eu queria agradecer por quem pensou em mim nesse tempo. Valentino é como um cão border collie, e Doug é como um labrador, sei lá.

Eu cai, e não foi só uma queda de bicicleta que serviu para me machucar, foi uma queda na minha vida, estou lá embaixo agora. E tenho muita raiva de me sentir impotente, parece que eu tenho que destravar um cadeado sem chave na minha cabeça, eu morri, e pelo visto estou de luto.

Não tô pronto para pular parte da minha vida, nem para voltar como se nada tivesse acontecido. Primeiro que eu não me lembro das últimas semanas antes do acidente. Segundo que falta uma semana para a primavera. Terceiro que estou sem ânimo para recuperar matérias na escola. Eu não existo mais. E 70% da minha vida era a escola.

Eu acabei lendo uns livros, e me encontro em prantos agora com o final de "Mentirosos", como pode todos eles terem morrido menos a Cadense. No meu caso eu sou a Cadense...Preciso espairecer.

O céu está tão azul aqui fora no mundo, o vento movimenta as nuvens brancas rápido. O gramado aqui dos fundos arranha minhas pernas, descuidado, meio morto, precisa de vida que nem eu. Eu vou revive-lo, quero plantar nele, li um livro sobre botânica e me apaixonei por flores. Preciso criar um novo "eu" que goste de viver novamente, tudo tem que ser semeado.

Descalço e sem camisa deito na grama alta, vejo as nuvens. É bom pensar que debaixo de todo esse azul há vidas e mais vidas se escrevendo, todos com seus relacionamentos, histórias, amores, todos vivendo. As pessoas vivem coisas incríveis por que elas decidem viver, eu ainda quero fazer isso, quero decidir.

De olhos fechados e estirado na grama, com os sentidos indo embora com o possível sono, ouço uma voz masculina ao longe, depois mais alta como se a esforçasse distante:

- Ei, garoto você está bem?

Eu escuto mas finjo estar dormindo, minha nova introspecção não permite que eu fale, mas ele continua:

- Garoto eu vou ter que descer aí pra ver como você está... Você não responde.

É tudo que eu precisava Senhor! Um estranho invadindo meu quintal pra ver se eu não estou morto. Isso me dá raiva, tenho asco de gentileza atualmente, eu nem posso deitar na grama velha em paz.

Ta De Sacanagem Vida?Onde histórias criam vida. Descubra agora