FIRST AUDIO

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O demônio rastejou para a luz leitosa da lua que penetrava por entre as frestas da persiana amarelada. Como uma zebra de olhos esbugalhados e boca transbordando uma saliva fétida, o bicho papão aprumou-se sobre a cama, abrindo suas asas invisíveis de pavão e sorrindo grandemente, de orelha a orelha, feito um corte profundo e homogêneo causado por uma faca bem afiada. Estava satisfeito com sua entrada triunfante, espreitando em silêncio as reações em cadeia que despertava no corpo frágil e fatalmente paralisado do policial sobre a cama. Era bom ser temido. O demônio podia farejar o medo, o desespero que estava preso naqueles ossos castigados e nas pupilas negras se dilatando na escuridão do cômodo.

Apenas para alimentar-se da adrenalina que corria na corrente sanguínea de Max a coisa pútrida inclinou-se devagar, apoiando as unhas escuras na beirada da cama, invadindo o espaço considerado seguro. Os dedos puxaram o cobertor azul marinho, descobrindo os braços paralisados ao lado do corpo e o peitoral que subia e descia tão rapidamente que delineava a camiseta branca. O corte profundo que uma vez fora uma boca curvava-se em um sorriso cada vez mais assassino repleto de dentes esverdeados na luz parca da lua, enquanto abaixava-se lentamente, sumindo do campo de visão do detetive e embrenhando-se sob o cobertor, escondendo sua forma humanoide no veludo no azul, de repente imitando um fantasma oculto pelo lençol.

Max fechou os olhos, apertou as pálpebras umas contra as outras até doer, implorando silenciosamente para que como ele, seu corpo acordasse. Escutava a respiração ruidosa aproximar-se de seu rosto, o rangido da cama enquanto o pesadelo subia sobre seu corpo vulnerável. Era amedrontador estar indefeso.

O celular começou a vibrar sobre a mesinha ao lado da cama e então o toque característico de ligação preencheu o ambiente. O corpo de Maxwell deu sinais de que estava de volta e ele esticou o braço esquerdo para puxar a corda do abajur, ainda de olhos fechados, pois sentia-se apavorado com a ideia de que poderia abrir os olhos e encontrar ali, sobre si, talvez pendurado no teto, olhando-o como uma presa fácil, o bicho papão. Ou o que quer que fosse a coisa que vivia debaixo de sua cama e saía para alimentar-se de si assim que a noite caía.

Sentou-se na cama, esquadrinhando o quarto com seus olhos docemente castanhos. Pegou o celular nas mãos e observou o nome de Anthony Kirby flutuando na tela. Sua respiração ofegante iria denunciá-lo assim que atendesse, mas àquele ponto não gostaria de ficar sozinho com seus próprios pensamentos.

- Estava dormindo? - a voz do colega parecia estranhamente sem emoção e como uma onda furiosa que engole a praia no inverno, Max já sabia do que se tratava. Desviou o olhar até a janela escondida atrás da persiana suja, o sinaleiro piscava viciosamente em vermelho e a avenida movimentada morria em uma quietude incomum de madrugada. - acharam outro corpo. - completou Anthony em um tom longínquo e frio.

- Envie o endereço, estou a caminho. - o detetive calou a impaciência que seu colega exalava.

Desligou a ligação. Três e quinze.

Suspirou e saiu da cama. O bicho papão não estava mais ali, restava apenas suas roupas e pastas de cenas de crime espalhadas pelo quarto e um silêncio forçado. Entre o tempo de acender a luz do cômodo para ter certeza de que tudo estava no lugar e procurar uma camisa social que não estivesse amassada, cogitou tomar banho, porém olhou outra vez pela janela e pôde sentir o frio da estação penetrar seus ossos como se fossem de gelatina e decidiu apenas trocar de roupa.

Não havia trânsito àquela hora da madrugada, a programação da rádio era agradável e o vento gélido se tornava revigorante ao tocar seu rosto sério. Maxwell, às vezes, principalmente em momentos como aquele, se perguntava se não teria sido uma ideia melhor ter seguido a carreira de Medicina e se tornado um legista como sempre sonhara. As vagas no necrotério não estavam preenchidas para o turno da noite e a forma como veria os mortos seria diferente, não pediria tanto envolvimento emocional como sua presente carreira, que sugava-lhe os resquícios de humanidade que ainda existiam. Era exaustivo viver naquele ciclo vicioso de corpos sendo encontrados brutalmente assassinados e ficar à deriva no meio do oceano sem ter nada para seguir, apenas vendo os cadáveres boiarem à sua volta.

Darkest HourOnde histórias criam vida. Descubra agora