São Paulo é um buquê, onde cada pedúnculo é devidamente arrancado com maestria e gentileza, mas que às vezes é roubado pela urgência de uma entrega, que danifica seu receptáculo, deixando apenas o vazio.
Buquês são flores mortas, preenchidas pela beleza exterior que dura tão pouco, o lindo arranjo feito para ti, logo mostra sua verdadeira face: um grande ermo mascarado pela estética, tomado pela falsa promessa da duração e satisfação.
O mais breve sopro de um novo dia se forma entrelinhas, a rotação devida do planeta em seu cosmo trás as cores convidativas, a mais pura dança arroxeada mesclando-se sobre o laranja intenso, que dentre a música da natureza, tão calma e cheia de pássaros matinais, vai perdendo força entregando-se ao azul mais claro, onde os raios da grande estrela os ilumina em sua magnificência.
E bem ali, no centro de uma cama demasiada, jaze a lembrança do que um dia fora Magda Valente.
Os fios banhados pelo tom acinzentado se espalha nos lençóis, criando inúmeras formas no espaço amarelo de um lençol, trazendo a sensação reconfortante do fim.
Fecha os olhos imaginando o tanto que fizera, o que poderia ter feito, mas a urgência do agora lhe comprometera.
Uma linha curva se faz presente sobre os lábios finos e secos, onde a íris castanha é preenchida por lágrimas frescas, as mãos enrugadas e tão frágeis erguem-se ao ar, tentando, mais uma vez, recolher um pedacinho do além para si.
O quarto está cheio, as conversas são baixas, a canção de Chico Buarque ecoa sobre os tímpanos, na missão de entregar um último momento. Encosto-me sobre o batente da porta velha, cruzando os braços e observando a tristeza humana que carrega tantas faces e choros, que mesmo sabendo que um dia viria acontecer, ninguém nunca está de fato preparado para minha chegada.
Magda sorri ao virar a face e me encontrar à espreita, a voz do delírio, da demência causada pelos noventa e sete anos de vida, a alegria de saber que finalmente me encontrou outra vez.
Por muito tempo foi considerado humanamente impossível o que estou prestes a narrar, onde nem minha própria existência fora capaz de acreditar no que ocorria, mas depois de quase um século vivendo aquilo, finalmente entendi que havia algo que o Criador não tinha nos contado.
Era possível encontrar a forma habilidosa com que manuseava o batom vermelho com maestria invejável, mesmo com unhas tão compridas. A face era pintada por tons vibrantes, variando entre um ciano intenso e o preto, cílios longos e os fios ondulados e armados em excesso, roubando toda a cena.
Marcela, sua melhor amiga na época, terminava de enfeitar os cabelos de Magda com correntes finas e pingentes de estrelas, certificando que as ondas não soltassem, que tudo estava perfeito.
Sobre fragmentos, captei o ímpeto incômodo de uma transformação, um milhar de partículas juntando-se numa dança tão atrevida, invasiva e dolorosa. Ergui a face para o céu de telha vermelha, onde as orbes fundiam-se em tantas cores em contraste com a poeira enegrecida que fazia presença por todos os lados. Um ímã sobrenatural me puxando para si, esmagando os ossos e dilacerando a carne, criando formas e sabores, iniciando uma brincadeira que apenas alguém como Criador poderia me causar.
Caí ao chão na mais pura sensação de dolência, onde o líquido fervoroso, as terminações nervosas e a lembrança de um corpo mundano me assombraram.
"Não precisa sofrer para saber o que é melhor para você", Ele disse certa vez, enquanto presenciávamos o início de tudo, onde mais uma vez, a ganância gritou no formato de uma maçã.
Nesse momento, onde meu corpo mundano se mantinha tão fraco, que tentava a todo custo conseguir o equilíbrio entre minha real forma e a casca concedida por Ele, encontrei o impossível.
VOCÊ ESTÁ LENDO
NÃO EXISTE AMOR EM SP
Short StoryEm uma jornada solitária e repleta de percepções metafóricas sobre a vida mundana, a Morte vê-se encurralada por um erro dentro do "Mundo Além", onde em vez de apenas recolher uma alma, ela acaba apaixonando-se em uma visão inventada.