Fofoca geracional

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Não sei explicar ao certo o porquê de eu continuar aqui. Na Terra, quero dizer. Creio que a minha alma compreendeu que eu sempre gostei muito dessa família, e acompanhá-la ao longo das gerações foi uma espécie de presente mórbido, um acalento para o meu fantasma, que não teve e talvez nunca terá os seus assuntos resolvidos na terra.

Isso seria uma desculpa adorável, a menos delicada é que talvez seja porque eu goste de uma boa fofoca, décadas de confusões dos Addams têm me entretido bastante. Me diverti muito na época em que Gomez e Mortícia ainda namoravam, por exemplo.

Quanto à mão, bem, comicamente foi a única coisa que me sobrou. Não tive a mesma sorte de alguns outros Addams do passado, que permanecem assombrando os jardins da mansão com seus corpos inteiros em ectoplasma. A mim coube possuir esse pedaço de carne remendado que um dia pertenceu ao meu corpo. Eles sempre me remendam quando é preciso, mesmo que eu nunca me regenere. No entanto, eles também nunca me deixarão ir.

Quando Gomez me deu a missão de acompanhar sua filha em Nunca Mais, meus dedos tremelicaram de ansiedade. Me senti revigorado saltando do carro por aquele sistema que ele fez, bastante engenhoso, devo admitir. Fazia tempo que eu não ia até aquela escola, e as últimas semanas que eu havia passado lá tinham sido conturbadas, com o patriarca da família quase se tornando um presidiário, assim, tão jovem. Uma pena não ter alcançado esse título.

Gomez queria que eu cuidasse de Wandinha. Confesso que sentia um pouco de falta daquela garota peralta que costumava me pedir ajuda para armar a guilhotina de bolso e preparar uma cerimônia para a decapitação de suas bonecas. Era tão gostoso puxar aquela cordinha...

Mesmo que morássemos na mesma mansão, nunca mais eu a tinha visto dançar, nem mesmo sorrir. A última vez em que a vi demonstrar felicidade foi naquele aniversário, com uma pinhata de aranhas caranguejeiras.

A jovem começou a amargar (e não de um jeito bom) quando aconteceu aquilo com o seu bichinho. O outro bichinho além de mim, é claro. Acho que é difícil me considerar um bichinho sabendo que se está brincando com o que se sabe ser os restos mortais do seu trisavô Hernandez... ou meu nome seria Clóvis? Não me lembro bem... Estou ficando velho!

Enfim, quando Nero se foi (ou melhor, foi assassinado), Wandinha mudou drasticamente de comportamento, e não foi de um jeito satisfatório. Ela sempre apreciou a morbidez, a tortura, mas só para os seres que a merecessem, ou seja: seres humanos. Já está no nome: Homicídio, referente ao Homem.

O que aqueles meninos fizeram não foi nada justo. Não vamos ser hipócritas e dizer que ela não matava animais também, quem não gosta de um escorpiãozinho frito envolto em açúcar? (Hummm... crocante, ainda me lembro, me faz desejar ainda ter uma boca. Se eu tivesse, estaria pingando saliva.)

O fato é que quando é a vida do seu pet que está em jogo, tudo muda de figura, assim como as crianças que criam pintinhos e mas comem galinha. Imagine chegar em casa e encontrar seu cachorro com os bofes para fora esparramado na mesa de jantar. Imaginou? Ah, eu disse cachorro? Na verdade quis dizer cabrito. Conheço gente que já passou por isso [Sinto muito pelo Lucy, K. (K. era a nossa vizinha de terreno)] e isso muda a vida de uma criança.

Obviamente Wandinha não deixou barato, e foi até que piedosa na resposta. Se fosse para devolver na mesma moeda, estariam tirando as manchas das vísceras no asfalto até hoje. Os pais dela ficariam orgulhosos... se soubessem o que ela fez. Ela não contou para eles, e não me perguntem onde foi que ela escondeu o saquinho cheio de unhas dos meninos, eu nunca vou revelar! Não quero que ela arranque as minhas unhas também, sei que ela ainda guarda o alicate sujo numa gaveta ao lado da cama.

O luto muda as pessoas. Acho que ela estava se preparando mentalmente para a morte de seu Tio Chico, sempre em aventuras perigosas. Ou talvez da Vovó... se bem que ninguém sabe de quem ela é mãe. Quem sabe, estivesse até contentada com a ideia de ser filha única, uma vez que brincava constantemente de enterrar seu irmão Feioso no jardim, "para fortalecer os genes", fazendo questão de enfiar a terra úmida em suas narinas e boca. Eu e os fantasmas ficávamos contando o tempo que uma pessoa levava para sufocar antes de ajudá-la a desenterrar. Sempre era mais rápido do que o trabalho solitário de apenas duas mãozinhas de criança(um golpe com pá poderia dar problema).

Diário(?) do Mãozinha [One-Shot | Spin-Off(?)]Onde histórias criam vida. Descubra agora