João olha o relógio e constata ter chegado quinze minutos antes da hora marcada, conforme planejado. Há outras pessoas na pequena sala. "Meus concorrentes", deduz. Se acomoda em uma das cadeiras, coloca o celular em modo silencioso, checa o currículo impresso na pasta elástica e certifica-se que o pen drive está consigo. Ele o pega, observa e fecha a mão no ar, devolvendo o dispositivo ao bolso. Disfarçadamente, sente o próprio hálito. Se empertiga no assento, cruza os pés e ajeita a gola sobre a blusa. Seus ruídos ocasionalmente atraem olhares esgueirados, menos os do rapaz de camisa azul, na ponta, perto do bebedouro.
Quando enfim os ponteiros se encontram, a maçaneta se move. Surge uma mulher jovem e elegante. Chama por João. Ele ergue a mão e levanta-se em um salto, esboçando de imediato um patético sorriso amarelo à espera de clemência pelo movimento exagerado. Ela gentilmente o convida para acompanhá-la. João acena com a cabeça e vai a seu encontro, meio descompassado, talvez rápido demais. No trajeto vê, de relance, nudes no celular do candidato da camisa azul, antes da tela ser habilmente fechada. "Sujeito sem noção", pensa.
Um extenso corredor se apresenta à frente, ladeado por inúmeras portas. Após alguns minutos percorrendo o lugar sem trocar palavras, a funcionária o conduz a uma delas, a qual dá acesso a outro corredor. Assim continuam de corredor em corredor, até chegarem a um amplo espaço interno decorado tal qual a nave central de uma catedral, com piso de mosaicos em mármore polido, coberta por imponente domo dourado. Seus embevecidos olhos castanhos deixam de admirar a beleza do cenário, porquanto seu corpo é impelido pela marcha inexorável a recintos menos nobres, ora subindo, ora descendo abafadas e deprimentes escadas de emergência.
Subitamente João se dá conta de que estão em ambiente aberto, um ensolarado passeio público. "Estamos na rua? Quando isso aconteceu?", indaga a si mesmo, olhando de um lado a outro. A secretária quase some de sua vista, ele aperta o passo a fim de alcançá-la. Adentram o prédio à frente, transitam pelo saguão e saem em outro quarteirão. "Alguma coisa está errada. Aonde estamos indo?" Ele tenta chamar sua atenção, porém ela parece andar mais rápido.
Passam por um beco, João tropeça em sacos de lixo e rasga a manga da blusa, expondo o pálido pulso. "Droga!". Ergue os olhos e enxerga um vulto dobrando à direita. Corre desesperado na esperança de alcançá-lo. Ao fim do beco, se depara com muitas caixas de papelão. Tenta se desvencilhar delas avançando como pode, a ponto de ser engolido, quando no meio daquele caos descobre uma maçaneta. Abre a porta e sai daquilo que seria um closet, para um quarto escuro cheirando a mofo. Há alguém na cama, puxando a coberta em um lânguido movimento lateral. Repara no pôster de Escher, na parede: "como cachoeira desaguando em si," reflete. Sorrateiramente, cruza o dormitório, caminha por salas interligadas repletas de móveis desordenados, os quais vão rareando e revelando uma imensa garagem, cheia de pilares e tubulação aparente. Nem sinal da maldita secretária.
A pasta havia sumido. "Deve ter caído no lixo," lamenta. Sujo e ainda ofegante, olha ao redor. Joga os braços para frente enquanto pensa em voz alta: "Que se dane." Claudicante, procura por um banheiro. "Cavalheiros", lê-se na placa da desgastada porta verde, ao fundo, próximo ao hidrante. Entra.
- Por favor, sinta-se à vontade. Trouxe o currículo?
- O quê? - João vira-se atônito.
- O currículo - repete a voz masculina.
Na esperança de ouvir mais uma frase, a qual o levaria ao interlocutor, João dissimula:
- Ah, o currículo! Bem... acho que o perdi - diz enquanto apalpa o bolso e sente o pen drive -, mas tenho ele aqui em arquivo.
- Passe pra cá - pede uma mão saindo debaixo da porta do sanitário.
Ele hesita, sacode os ombros e resolve entregar o dispositivo. "O que é um peido pra quem está cagado," ri em pensamento. Se levanta e fita o reflexo no espelho, à procura de algo errado consigo afora o cabelo escuro despenteado. A pausa é cortada:
- João, gostei do seu perfil. Não questiona, não reclama e se adapta rapidamente às situações. Além disso, passou no teste. Poderia começar amanhã, no mesmo horário?
- Claro, sem problemas - responde de sobressalto. - Não vejo a hora.
- Então nos vemos em breve. Espero que tenha decorado o caminho. - A voz pigarreia e continua: - Antes de ir, poderia, por gentileza, me passar o papel?
- Tá na mão - diz João, enquanto repassa o rolo por debaixo da porta.
- Obrigado.
De partida, João se detém diante da saída. Seus pensamentos estão confusos, contudo, a satisfação de ter conseguido a vaga transborda em um sorriso meia-lua no canto de sua boca. Ouve o barulho da descarga. Uma fina luz branca delineia o espaço entre o batente, se expandindo à medida que João empurra a porta. Finalmente ele sai e desaparece atrás dela, fazendo o forte brilho cessar por completo. Neste ínterim, o rapaz da camisa azul e do nudes entra, todavia, nenhuma luz invade o local. Ele se dirige ao sanitário de onde outrora vinha a voz. Não há ninguém, apenas o cheiro fétido de uso recente.
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Curriculum (conto)
Short StoryAquilo que parecia apenas mais uma entrevista de emprego torna-se uma jornada insólita. Diante do que se apresenta, talvez seja melhor seguir com o jogo, pois independentemente da escolha, o desfecho é imprevisível.