Observações importantes antes de começar a leitura. Esta obra de maneira alguma faz apologia a qualquer um dos temas abordados. Tenha em mente que a partir de um determinado momento da narrativa, o leitor irá entrar diretamente nas lembranças e na mente da protagonista. Alguns pontos importantes devem ser explicados aqui, ao que se refere a algumas falas e pensamentos da protagonista.
É importante reconhecer que cada pessoa e cada situação são únicas, e as respostas emocionais podem variar amplamente em casos de abuso. No entanto, existem alguns fatores que podem explicar os sentimentos confusos que algumas vítimas podem experimentar em relação aos seus agressores.Uma razão possível é o fenômeno conhecido como "ciclo de abuso", que envolve uma interação complexa entre períodos de abuso, tensão acumulada e "lua de mel". Durante a fase de "lua de mel", o agressor pode apresentar comportamento carinhoso, se desculpar e prometer mudanças, o que pode levar a sentimentos de confusão e esperança por parte da vítima.
Além disso, as vítimas de abuso podem desenvolver um apego emocional aos seus agressores como forma de mecanismo de defesa. Em alguns casos, a vítima pode acreditar que, ao desenvolver sentimentos pelo agressor, estará mais segura ou poderá evitar enfrentar a realidade dolorosa do abuso.
É importante ressaltar que esses sentimentos não indicam de forma alguma que a vítima "gosta" ou "quer" o abuso. São respostas emocionais complexas e podem ser muito difíceis de entender e processar. É fundamental que as vítimas de abuso encontrem apoio emocional e profissional para ajudá-las a lidar com essas questões complexas e buscar um caminho para a cura e recuperação.
Clarissa pode sofrer com Síndrome de Estocolmo que é caracterizada por um estado psicológico de intimidação, violência ou abuso em que a vítima é submetida por seu agressor. Porém, ao invés de repulsa, ela cria simpatia ou até mesmo um laço emocional forte de amizade ou amor por ele.Dito isso, tenha cuidado ao ler o conto, pois pode ativar gatilhos.
Atenciosamente, sua autora!
Se as pessoas tivessem a chance que eu tive de me redimir, penso que poucos estariam sofrendo como estou agora. No entanto, a culpa é toda minha. Talvez eu mereça nunca encontrar alguém para amar. Não posso fugir e nem me esconder. Aliás, não tenho para onde fugir e nem onde me esconder.
Estar aqui, jogada na lama e a beira da morte, me fez refletir em todas as minhas decisões conturbadas e infelizes, todas aquelas que me levaram ainda mais para longe daquilo que eu deveria ter sido. Nem sempre fui assim, esse ser desprezível que está aqui. Um dia fui uma menina cheia de esperanças em uma cidadezinha esquecida por Deus e por todos, onde ser diferente era sinônimo de sofrimento.
Aos doze anos, passava a maior parte do meu tempo escondida de todos. Naquele dia tinha acordado com uma dor de estômago terrível, me vesti sem a menor vontade e saí sem tomar café. Mal dei dois passos e senti algo me atingir nas costas.
— Eu falei que acertava ela. - A voz familiar de Lorena a caçoar de mim se fez tão presente que meus ouvidos chegaram a doer. — Está me devendo um lanche, José!
Levei a mão ao local atingido e senti a viscosidade e o cheiro pútrido invadir minhas narinas. Não poderia voltar e me trocar. Se fizesse isso, perderia a prova de matemática que o senhor Roffman havia marcado semanas antes.
— Sai da frente, Clarissa! - A garota diz esbarrando em mim. — Você fede!
Engoli o choro e retirei o casaco, uma tentativa falha de amenizar o cheiro. Inútil!
Lorena e José não eram os únicos a serem cruéis comigo, contudo eram de longe os piores.
— ME LARGA! - Lembro-me de me contorcer de dor e, aos gritos, implorar para que parassem com aquilo. Lorena havia decidido que deveria me punir porque, segundo ela, Lucas, um garoto do oitavo ano, supostamente trocou olhares comigo.
— Sua vadiazinha sem futuro! - Ela dizia enquanto esfregava meu rosto no chão com a ajuda de José.
— Ei! O que vocês dois estão fazendo? Soltem logo ela! - Eu só conseguia ver tênis perfeitamente limpos e alinhados enquanto erguia vagarosamente meu rosto.
— Qual é, Lucas! É sério isso? Logo a sem sal? ‐ Lorena sempre me chamava assim. — Ela só serve para o paizinho pedófilo dela!
— Fecha a boca. - O rapaz me ajudou a levantar. — Olha o que vocês dois fizeram. Vem, Clari, eu vou te ajudar. E vocês dois, se não quiserem ser expulsos, acho melhor ficarem longe dela.
Acho que foi a primeira vez que me senti acolhida. Segura… Sabe? Não tinha isso em casa ou em qualquer outro lugar. Lucas me acompanhou até a única farmácia que tinha naquele fim de mundo, sentou-me na calçada, entrou, comprou o que precisava e sentou-se ao meu lado.
— Deveria falar com o diretor e contar o que eles fazem com você. - Diz enquanto limpa o corte que ficou bem acima da minha sobrancelha esquerda.
— Nada iria mudar. Assim como nunca mudou em casa quando contei a verdade. - Respondi tirando a gaze de sua mão e me levantando em sequência. — Eu agradeço a gentileza, mas deveria ficar longe de mim. Eu não te trarei nada de bom.
— Deveria deixar eu decidir por conta própria, não acha? Quer dizer… Eu posso muito bem ver quem vai ou não vai me fazer bem. - Disse ele se pondo de pé e me auxiliando a ajeitar a alça da mochila que tinha se soltado durante o ataque.
Se eu soubesse naquele dia o que sei agora, tudo seria diferente. Meu Deus! Que patética que eu sou. Então morrer é mesmo assim? Ficar relembrando coisas inúteis? Clichê demais para quem está nas últimas.
Lucas passou a ficar ao meu lado sempre que alguém tentava implicar comigo. Com o tempo, passamos a nos aproximar e o inevitável aconteceu.
— Eu confiei em você. Como pode contar para todos… - Minha voz saiu com tanta amargura que não consegui reconhecê-la. O empurrei com força. O rapaz nada dizia.
— Achou mesmo que iria conseguir um cara como ele? Só pode ser lesada mesmo. Eu já disse, você não passa de uma vadia! Ou você acha que não sabemos do seu caso com o senhor Roffman? Só assim para conseguir as notas que você tem na matéria dele. Podre, você é podre! - Lorena cuspia as palavras em cima de mim enquanto todos de minha classe riam e jogavam o que tinha em mãos em minha direção. Naquele dia, tive que ser tirada de lá pelo diretor e não foi de um jeito gentil. Leonard me arrastou pelo braço até sua sala e, assim que entramos, me empurrou até a cadeira a sua frente.
— Sente-se aí. - Deu a volta na mesa e passou as mãos nos cabelos pretos. Estava visivelmente nervoso. — O que vou fazer com você? Só arruma confusão! Se um rumor desses cai na boca da secretária de educação, eu perco meu cargo! Então se a senhorita estiver de fato dormindo com um professor, termine logo essa palhaçada. Eu não vou permitir que coisas assim aconteçam em minha escola. Dê um jeito, e rápido!
— Senhor Zimerman, eu jamais...
— Eu conheço bem a sua reputação, não pense que pode me enganar! Agora vá se limpar, tem sangue aí. Que nojo.
Levantei me sentindo quebrada, destruída por dentro e por fora. Andei pelos corredores torcendo para não cruzar com ninguém. Respirei aliviada quando adentrei aquele banheiro mau cheiroso. Quando me olhei no espelho, pude notar a extensão dos danos causados. Alcancei a torneira e a abri, enfiando minhas mãos na água corrente e gélida. Ali fui lavando toda a sujeira, sangue e lágrimas do meu rosto.
— Precisa se dar mais valor. - A voz de Joaquim me assustou e ao mesmo tempo causou-me alívio. Ele era o único que nunca me magoou ou me tratou como lixo. Fiquei momentaneamente confusa. Poderia jurar que tinha entrado no banheiro feminino, mas a essa altura, quem se importa com isso?
— Tome aqui e se apresse antes que eles te vejam. - Estendeu-me um lenço branco e saiu, tal qual havia entrado, sem maior alarde.
Me olhei uma última vez e saí a passos largos. Me afastei da escola praticamente correndo, nem me importei se perderia alguma matéria, só queria ser invisível. Me refugiei no velho banco da praça que já não era mais frequentada há uns bons anos. As pessoas tinham medo. Houve um ataque a uma senhora ali e desde então o local ficou deserto. Para todos os outros era amedrontador, mas para mim era pacífico.
Chorei tudo que tinha para chorar e no fim da tarde caminhei até em casa. Lá não era um lugar diferente. Sabia que não estaria segura ali, mas mesmo assim, eu, agora com meus quatorze anos, não tinha outro lugar para ir. Mal virei a esquina e avistei minhas coisas espalhadas na rua ao relento. Apertei o passo e, quando me aproximei, senti uma dor inacreditável. Minha mãe estava recostada na porta, e como um carrasco que estava prestes a dar cabo de sua vítima, ela sorriu quando seus olhos me alcançaram.
— Finalmente, Clarissa! - Falou dando dois passos em minha direção.
— Mamãe?! - Minha voz vacila e sai quase como um sussurro doloroso.
— Não me chame assim. Pegue suas coisas e suma! Cansei dos problemas que você me arranja. Quer ser uma vadia que dá para qualquer um? Que faça longe de mim. - A maldade com que diz isso me causa uma pontada no peito tão forte que acabo me curvando. A mulher que estava na minha frente não podia ser minha mãe. Eu me recusava a acreditar que era.
Sem piedade alguma, ela joga uma mala velha em cima mim.
— Mãe... Por favor, eu não fiz isso. - Estava quase suplicando. Estava pronta para me ajoelhar quando senti o peso de sua mão em minha face. Cambaleante, a encarei com desespero nos olhos. A mulher que deveria me proteger girou os calcanhares, adentrou a casa, batendo a porta atrás de si sem nem olhar para trás.
Estava tão chocada que não percebi a quantidade de vizinhos que tinham saído de suas casas para literalmente rir da minha desgraça.
— Vem! Eu te ajudo. - Pela segunda vez naquele dia, Joaquim veio ao meu auxílio. Estendeu-me a mão e me permitiu apoiar-se nele. Já de pé, comecei a juntar tudo que podia. A mala não era grande o suficiente, então, com a ajuda do rapaz, peguei só o necessário.
Caminhamos lado a lado por várias vielas que inevitavelmente dariam no centro da cidade. Joaquim se manteve tão calado quanto eu. Alcancei um banco próximo a rodoviária e ali me larguei, levando as mãos ao rosto.
— Posso te dar um conselho? - Ele diz chamando a minha atenção. Ergui o rosto e fitei seus olhos, e acho que ele entendeu isso como uma permissão para prosseguir. — Vá para longe. Qualquer lugar deve ser melhor que aqui.
— Não tenho um mísero centavo.
— Aqui! - Me estendeu algumas notas. — Não é muito, mas se usar com sabedoria, com certeza conseguirá chegar em alguma outra cidade e, de quebra, conseguir abrigo e comida.
— Não posso aceitar isso…
— Está faminta e sem rumo. Não acha que a recusa é estúpida agora?
Abaixei a cabeça e refleti suas palavras por alguns minutos. Por fim aceitei a gentileza.
— Não sei se vou poder retribuir.
— Você já fez isso, mesmo que aparentemente não se lembre.
— Busquei em minhas memórias algo embasado em sua última fala, porém não encontrei nada.
Joaquim me deu um abraço e me deixou ali sozinha. Olhei ao redor tentando decidir qual seria o próximo passo. Contei as notas e percebi que não iria muito longe com aquilo. Decidi que por ora precisava me alimentar, então andei até a parada de caminhos. Adentrei o local e me sentei no balcão mesmo. Pedi um salgado qualquer que vi na pequena vitrine e o devorei como se fosse o prato mais elaborado e saboroso do mundo.
Não demora muito para sentir alguém sentar-se ao meu lado. Virei discretamente e então percebi o homem de meia idade e corpulento me encarando. Sustentei seu olhar por alguns segundos e voltei a fitar meu prato.
— Não é muito tarde para uma menina tão linda estar andando por aí assim? - A voz dele era mais profunda do que eu imaginava.
— Não tenho para onde ir. - Respondi no automático, sem me preocupar. Percebi o olhar de reprovação da atendente e ignorei o mesmo. Já estava perdida, então não fazia mais diferença se era perigoso ou não.
De repente uma ideia surge em minha cabeça. Me ajeitei no banco e o fitei novamente.
— Você está indo para onde? - Perguntei, lhe dando um sorriso. O homem olhou em volta desconfiado e passou uma das mãos em sua nuca.
— Cidade de São Paulo. Por quê? - Abaixou o tom para me responder.
— Pode me dar uma carona? - Perguntei sem tirar os olhos dele. O homem à minha frente pareceu nervoso com a pergunta.
— Aí depende. Como você vai me pagar por essa carona? - Eu já sabia que essa pergunta viria e confesso que estava preparada para ela. Me aproximei e sussurrei a resposta em seu ouvido. Quando me afastei, vi um sorriso nascer em seus lábios e recebi um leve balançar de cabeça em concordância com a minha proposta.
Por 14 anos fui taxada de vadia, então porque não assumir logo essa faceta? Mesmo que ela não tivesse passado de rumores maliciosos, eu já estava na chuva mesmo, então apenas decidi me molhar.
Seguimos por longos e longos quilômetros, confesso que foi um percurso agradável. Conheci Lorenzo um pouco melhor e não foi tão ruim assim. Em nenhum momento ele me tocou, e quando chegamos eu cumpri com a minha parte do trato.
A penumbra daquela rua escura escondeu e engoliu meu ato e seus gemidos. Quando finalizei, ele me estendeu um lenço de papel com o qual limpei minha boca. Lorenzo, antes de me deixar sair, me deu um cartão com seu nome e telefone.
— Ei, garota, não se meta em confusões. Já que está aqui, procure um emprego sério e prove para todas as pessoas que te fizeram mal como elas estavam erradas. Se precisar de alguma coisa, me liga. Não importa a hora. - Sabia que com isso ele só queria garantir um bom boquete, mas escolhi entender aquilo como um ato de carinho.
"As ruas são mais fétidas do que pensei." Esse foi o primeiro pensamento que tive ao caminhar à procura de abrigo. Não podia me hospedar em qualquer lugar. O dinheiro que Joaquim gentilmente me deu daria apenas para um aluguel, isso se eu tivesse sorte. Decidi seguir os conselhos que Lorenzo me deu durante a viagem e achei a pequena pousada compartilhada que ele me indicou. Me sentei na calçada esperando o amanhecer.
"Devia considerar isso como uma segunda chance?"
"Devia agarrá-la de fato?"
Contudo, o questionamento que mais me atormentava era: "Será que eu mereço ser feliz? Será que eu mereço uma segunda chance?"
Acredito que quando se passa muito tempo ouvindo, de todos a sua volta, sobre o quanto você não presta, isso fica gravado no seu subconsciente. De alguma forma, lá no fundo eu achava que a culpa era minha. A culpa por todo o ódio que recebi era minha.
Quando amanheceu, pude conhecer Marta, a dona do local. A senhora tinha um olhar julgador e isso não era novidade para mim, então apenas lhe expliquei o básico e quem havia me indicado seu estabelecimento, mentindo sobre ter sido enviada para estudar. Uma mentira inofensiva que ela comprou facilmente, já que sua pousada abrigava muitos estudantes. Combinei um determinado valor a ser pago todo o quinto dia útil. Com isso resolvido, agora eu só precisava de um emprego, então abraçaria a minha segunda chance de peito aberto.
Sabe o que é mais triste? Andar por horas e não receber uma única oportunidade. Já haviam se passado duas semanas e eu não tinha encontrado nada. Desesperada, pensei no meu velho amigo do caminhão. Aquele que me trouxe até aqui. Uma ideia sórdida me passou pela cabeça. "E se essa for minha saída?" Afastei por hora esse pensamento e voltei à pousada me sentindo derrotada.
Logo na entrada esbarrei em Letícia. A moça era o que eu chamaria de patricinha, sempre achei que era bancada pelo papai rico, já que não trabalhava, mas vivia gastando. Roupas de marca era tudo que usava, a típica popular que sempre recebeu tudo de "mão beijada".
— Nossa, Clarissa, mais um pouco e você arranca meu ombro. Ai! - Reclamou e com uma certa razão.
— Desculpa, estava distraída. Não foi minha intenção.
— Ia tirar o pai da forca? - Ela segurou meu braço e me puxou para um banco que ficava no pequeno jardim da frente. — Senta aí e me diga qual é o problema, por que claramente tem algo errado.
— Faz dias que estou procurando emprego para me manter e… Quer saber, esquece. Como que a riquinha iria me entender. - Acabei me levantando e tentando sair.
— Clarissa, cala a boca e me escuta. Acha mesmo que eu tenho tudo isso por causa da minha família? - Ela começou a falar cada vez mais baixo, o que me fez ficar muito próxima para conseguir entendê-la. — Eu tenho o emprego dos sonhos.
— Que emprego?
— Tenho um corpo muito valioso, sabia? E usá-lo para garantir meu sustento foi fácil.
— Você é uma prostituta!
— Shiu! Quer que nos expulsem? Prefiro que me chame de acompanhante de luxo. Não me confunda com as que ficam na rua fazendo ponto.
— Por que está me contando isso? - Perguntei desconfiada e já de pé.
— Amor, você tem essa cara de menina virgem e inocente e é gata. Se daria muito bem nesse ramo. - Letícia se aproximou e percorreu minhas curvas com as mãos, ajeitando uma mecha dos meus cabelos revoltosos atrás da orelha. — Tem potencial. Conheço homens e milhares que pagariam muito por uma noite com você. Se te interessar, é só bater no meu quarto. Ah! Isso será um segredo nosso. - Me surpreendeu com um selinho nos lábios e saiu.
Fiquei parada ali por um longo tempo. Era como se tivessem duas de mim disputando entre si. Uma me dizia para ficar na linha e seguir os conselhos de Joaquim e Lorenzo sobre arrumar um emprego seguro, e a outra gritava para que me agarrasse a proposta de Letícia, afinal era dinheiro fácil, rápido e garantido. Quando dei por mim, já tinha anoitecido. Tratei de entrar e me banhar, pois hoje não teria o que comer. Estava economizando até meu último centavo na esperança de que o dia seguinte seria melhor.
Você já teve a sensação de que quanto mais deseja fazer o certo, mais o mundo te empurra para o "errado"? Estava agora a apenas uma semana do dia de pagar o aluguel e não possuía nem um mísero real no bolso. Meu estômago doía de fome. Todas as vezes que me sentia desesperada, ligava para a única pessoa que tinha sido "gentil" comigo além de Joaquim. Lorenzo. Ele sempre tinha uma palavra amiga, porém nem ele poderia me ajudar naquele momento. Derrotada, caminhei até a porta de Letícia e me rendi aos seus caprichos.
Em pouco tempo descobri o que meu corpo tinha a oferecer. Homens, mulheres, os dois ao mesmo tempo… Eu não fazia diferenciação. Estava embriagada por aquele mundo tão diferente do meu. O mundo que me dava jóias, dinheiro, bebidas, viagens e tudo o que um dia era só um sonho distante. Ainda assim, as palavras que ouvi a vida inteira me perturbavam sempre que estava sóbria. "Lembre-se, Clarissa, você é só uma vadiazinha que não vai ser nada na vida." Esse pensamento tinha sempre a mesma voz. A voz de Lorena.
Estava crescendo nessa profissão. Nesses quatro anos me aprimorei muito. Ainda assim, preferia viver na pousada e fingir ser uma estudante recatada. Isso facilitava quando o assunto era mexer com o imaginário dos meus clientes. Contudo, todo o crescimento em demasia tem uma queda tão grande e potente quanto.
— Já chega, Clarissa! Precisa ir ao médico! - Dona Marta me repreende ao me ajudar a se levantar da calçada. Fazia algum tempo que estava experienciando fadiga, febre, mal-estar, perda de apetite e suor noturno. Estava tão exausta que nem lutei contra sua sugestão.
E no dia marcado, lá sentei-me naquele consultório. Lembro-me de contar ao senhor à minha frente o que me acometia. Lembro-me de suas expressões enquanto me ouvia e, principalmente, de suas palavras enquanto pedia um exame muito específico. Aquelas malditas quatro letras jamais sairiam da minha cabeça.
AIDS.
— Sugiro que faça o teste o mais rápido possível. - O velho senhor até tentava ser gentil e humano ao falar comigo, porém eu sabia que havia perdido qualquer credibilidade quando disse a profissão que exercia.
Saí de lá com todos os exames pedidos e me apressei em fazê-los. Impressionante como o dinheiro nessas horas pode realmente acelerar um processo que, de outra forma, seria longo e muito mais doloroso. No fundo eu já sabia o resultado, ouvi-lo daquele médico não causou nenhum impacto em mim.
Fiz o que não fazia há um certo tempo.
— Lorenzo! - Lembro que minha voz saiu fraca e chorosa.
— Clarissa! Aconteceu alguma coisa? Clarissa...? - Enquanto ele chamava meu nome do outro lado da linha, eu fungava baixinho. Um desespero tomou conta de mim e acabei desabando. Ele teve paciência em esperar eu me acalmar. — Está mais calma? Me conte o que te causou tamanho choro. - Sua voz suave penetrou em meus ouvidos e então eu lhe contei tudo.
Meu velho amigo ficou mudo por um tempo e quando voltou a falar me surpreendeu.
— Deveria parar com seu emprego, juntar todo o dinheiro que tem e se tratar. Você pode viver com a doença, muitos fazem isso. - A voz dele, mesmo tentando passar tranquilidade, estava tremida. Nós dois sabíamos como aquilo ia acabar, contudo ele não sonhava qual seria a estrada até o fim.
Naquela noite, e em muitas que se seguiram, eu não dormi. Pensei em tudo pelo qual havia passado e, diante das minhas opções, sucumbi ao meu desejo sombrio, aquele que eu vinha maquinando a muito tempo.
Eu iria ter a minha vingança.
Se eu ía morrer, levaria quantos conseguisse comigo. Aqueles que tanto me fizeram mal.
Voltei àquela cidade. Não como uma mulambenta, tal qual como saí. Não daria esse gostinho a eles. Voltei como uma mulher bem sucedida, desfilando pelas ruas com meu carro de R$60 mil. Eu tinha uma lista de prioridades e iria me esforçar para cumpri-la.
— Mamãe?! - Chamei o mais doce possível em frente a sua velha porta. A mulher abriu e me olhou incrédula. — Não vai me convidar para entrar? - Sem falar nada, a velha me deu espaço e tudo que vi foi a porta se fechando atrás de mim. Fale o que quiser, ter uma mãe fofoqueira nunca foi tão útil. — Então Lucas e Lorena namoram? Muito bom! Ótimo, na verdade.
— Mas e você? Não me diga que conquistou um velho rico? - Ela questionou. "Patético", pensei ao sorrir falsamente para a velha a minha frente.
— Quase isso. E... O papai? - Se eu quisesse passar o meu veneno a ela, teria que usá-lo. Não era como se ele nunca tivesse me tocado, afinal eu sempre fui o brinquedo favorito do papai.
— Aquele lá não sai do bar. O que fica perto da escola. - Parecia contrariada ao me responder. Lhe dei um sorriso de canto e logo me despedi.
Minha querida progenitora foi útil aos meus planos. Soube exatamente onde todos estavam e como deveria me aproximar. Um era o doce e amado estudante de medicina. O outro, um aspirante a político. Lorena era a assessora do prefeito, vulgo seu pai. Nepotismo do caralho. Acabei rindo de como as coisas não mudavam naquele lugar. Lucas era um estudante de pedagogia, dedicado e super caridoso. Mas, o mais importante de tudo, todos se reuniam sempre na única balada furreca que tinha ali.
Seriam presas fáceis.
Quando cheguei no boteco, vi minha presa cambaleando próximo ao balcão. O babaca continuava sendo o mesmo seboso nojento de sempre. Me encontrei no batente da porta e esperei o momento certo.
— Ora, ora, ora, se não é meu maravilhoso papai. - Disse quando finalmente vi que ele estava completamente embriagado, o que não demorou muito.
— Cla... Clarissa?! - Seu hálito horrível me alcançou, ao passo que ele se aproximava de mim. Me controlei para não arrebentá-lo ali mesmo. "Anda, Clarissa... Foca no seu objetivo!"
— Mamãe pediu para que eu o levasse para casa. - Insuportável, ele era insuportável. Tudo que ele fez foi sorrir e me acompanhar. Quando tudo terminou, me esquivei daquele corpo nojento e me apressei em me vestir. O deixei lá.
Dois a menos. Eu sabia que meu veneno chegaria na velha também, já que os dois eram como coelhos promíscuos que não faziam a menor questão de esconder suas aventuras sexuais. Agora tudo que eu pensava era quantos mais eu iria abater.
Meu amado ex diretor seria o próximo. Fácil demais, tudo que precisei foi de uma saia curta e minha melhor cara de inocente.
Três a menos.
Com José a coisa foi diferente. Levei cerca de duas semanas para conseguir levá-lo para a cama. Em minha defesa, demorou tanto por conta do rapaz ser bissexual não assumido e manter um relacionamento secreto com outro de meus ex colegas. Mirei no namorado e coletei os dois. Assim fui envenenando um por um, até restar apenas o meu grande prêmio, Lucas e Lorena.
Passei dias acompanhando a rotina de ambos. Lucas era muito regrado. Todos os dias saía cedo rumo à faculdade, ficava por lá até próximo das 13 horas, depois dedicava seu tempo livre auxiliando criança carentes em nossa antiga escola. Já Lorena, estava no mesmo horário, mas não era tão pontual. A vespa ridícula cursava administração pública e pretendia seguir os passos do pai. Nos finais de semana, ambos se dedicavam um ao outro e gostavam de frequentar a única boate do local.
Vesti meu melhor vestido, minhas jóias mais caras, meu sapato de marca caríssimo e completei tudo com minha channel básica. Fiz questão de chegar com meu carro e deixá-lo na vaga mais visível. Adentrei o recinto caminhando como uma leoa à caça. Passei por vários que eu tinha certeza que me cobiçavam e sentei-me no bar. Iria esperar em grande estilo, portanto pedi o melhor e mais caro drink da casa.
— Achei que estavam mentindo para mim, mas parece que nossa depravada favorita voltou às suas origens. - A voz da maldita continuava a mesma e conseguia despertar o pior de mim.
— Olha só, é a serpente sem importância do interior. - Respondi a altura. Devia me controlar? Talvez, mas já não era tão importante.
— Amor? Te achei finalmente... Clarissa? - Lucas me olhava como se tivesse visto um fantasma.
— Em carne e osso. - Ergui meu copo em sua direção e brindei sozinha. Passei pelos dois e me atirei na pista de dança. Senti os olhos de ambos queimarem minha pele e de canto de olho vejo a vadia puxar Lucas para fora. Sorri satisfeita. Já tinha decidido que isso seria apenas uma provocação, o golpe final viria depois.
Quando se está caçando, se deve separar e cercar o mais fraco. Lucas era o mais fraco. Qual não foi sua cara de espanto ao me ver como sua nova ajudante na escola. Tive que conter meu sorriso de satisfação.
— Não sabia que era caridosa. - Ele disse sem olhar em meus olhos.
— Não sabia que se importava.
— Por que voltou? Estávamos bem sem você por aqui. Quer dizer, precisava revirar o passado?
— Causar o caos faz parte da minha cura interna, e sejamos francos um com o outro, minha presença não arranhou nem a superfície ainda. - Respondi me afastando e dando minha total atenção ao trabalho.
Menos de um mês, foi o tempo que levei para entrar no relacionamento deles. Lucas aos poucos sedia as minhas investidas. Lorena estava enlouquecendo de ciúmes e eu queria que ela ficasse louca mesmo. Vez ou outra, me sentia muito fraca e tentava ao máximo não deixar transparecer minha situação. Por dias sofri com diarreia aquosa, náuseas e vômito. Tinha que terminar isso logo.
Saí do hotel onde estava hospedada, decidida a pôr um ponto final nisso. Mal cheguei naquela sala e vi Lucas sozinho. Não perdi tempo e o beijei. Beijo desesperado e lascivo. Lucas se perde em mim e retribui meus toques.
— Não podemos fazer isso aqui. - Ele disse afagando meu rosto.
— Hoje a noite. Eu aluguei uma casa, vou te passar o endereço. Fica na saída da cidade. - Respondi anotando o endereço e lhe dei o papel. Lucas o tomou de minhas mãos, o guardando em seu bolso rapidamente. Momentos depois a sala estava cheia de crianças. Aproveitei o dia ao máximo, pois querendo ou não, me sentia bem ao lado delas.
Saí e fui direto para a casa. Já tinha deixado tudo pronto de antemão. Subi as escadas, me banhei, vesti uma lingerie sexy e aguardei. Exatamente na hora marcada, Lucas tocou a campainha. Sorri sedutoramente quando abri a porta.
— Vou te dar um presente hoje. O melhor de toda a sua vida. - Disse a ele antes de consumar meu desejo.
Esperei cerca de três semanas. Dormi com ele quantas vezes foi possível fazê-lo e finalmente dei o golpe final. No momento, Lucas está tomando banho. Aproveito e engatinho pela cama, alcançando sua calça que estava largada na cadeira. Não precisei vasculhar muito seus bolsos para encontrar o que procurava.
— Sem senha? Uau. - Deslizei a tela com facilidade. — Lena? Ai credo, que brega. - Não pensei duas vezes para fazer a ligação.
— Alô, amor! - Lorena atende no segundo toque.
— Quanta honra me chamar assim. Olha, não sabia que palavras agradáveis poderiam sair dessa sua boca suja. - A mulher ficou muda por um tempo.
— Por que está ligando do celular do meu...
— Do nosso Lucas. Olha só… Queria avisar que eu odeio sentir seu gosto na boca dele, mas mesmo assim estamos transando que nem dois animais. Acho que não vai querer perder o flagra, né? Vou te mandar o endereço.
Coloquei o aparelho no seu devido lugar e aguardei. Não demorou muito para nossa noite perfeita se transformar em um show de horrores. Como previ, Lorena veio e, sem contar até dois, partiu para cima de mim. Até dei uns tapas nela, porém sabia que não tinha mais forças para lutar. Estava sem consciência quando ela me arrastou rua abaixo, a chuva torrencial nos banhando, com Lucas tentando acabar com aquela confusão. Quando ele finalmente a tirou de cima de mim, comecei a rir.
— Para, Lorena! Vai nos meter em confusão! - Lucas a puxa para longe.
— Do que você está rindo, sua vadia esquisita? Já conseguiu ter seu momento com o meu homem, agora está aí arrebentada. - Ela atira as palavras em mim.
— Estou rindo porque logo vou ver todos vocês no inferno! Aproveitem o tempo que vocês têm, pois ele vai ser curto, e para a minha felicidade, será mais doloroso que o meu.
— Do que você está falando? RESPONDE!
— Para de se debater, Lorena! Vem, vamos embora. - Lucas a enfiou dentro de seu carro e então virou-se para mim. — Desculpe, eu preciso... - E me largou aqui.
Agora que minha vida patética passou inteira diante de meus olhos, só me resta dar o golpe final. Por sorte meu aparelho não quebrou e minhas mãos ainda me obedecem. Com dificuldade, digito minhas últimas palavras e finalmente aperto o enviar.
Mensagem enviada para 50 pessoas
"Aproveitem meu último presente e lembrem-se de tudo o que me fizeram enquanto agonizam de dor.
Exame positivo para Aids (HIV)
Soropositivo.
Vamos todos queimar juntos.
Com amor,
Clarissa."Possui 4964 palavras.
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Clarissa
Short StoryAté onde você iria para se vingar de quem te causou tantos traumas? Clarissa se fez essa pergunta por muitos anos. Nunca havia encontrado uma resposta plausível, porém a vida lhe deu uma oportunidade única. Uma que talvez seja uma consequência de tu...