Capítulo Único

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"Como foi?" Deodora perguntou assim que viu Pajeú entrando na casa. Ela se levantou da cadeira na qual estava sentada e foi ao encontro do homem, aparentando estar bastante preocupada. "Você conseguiu?"

Para sua felicidade, ele concordou com a cabeça. "A doutora saiu de Canta Pedra, sem avisar ninguém. Ela já deve tá a caminho da cidade dela agora, eu mesmo a vi indo embora."

Com essa garantia, ela suspirou, aliviada. "Graças a Deus, Pajeú. Obrigada." Ela o abraçou, encostando a cabeça em seu ombro. Bem no fundo, Deodora sentia um aperto no coração, mesmo com menos esse problema em sua vida. Uma pontada de culpa no peito por estar usando Pajeú daquele jeito - o que era estranho, porque ela normalmente não se sentia assim com as pessoas, muito menos gente como ele. Tudo podia ser justificado se ela conseguisse o que quisesse, e ela sempre o fazia. Fechando os olhos, ela se repreendeu. Não podia começar a amolecer justo agora. Deodora Aguiar não tinha coração mole.

Pajeú hesitou, antes de retribuir o abraço. Por um instante, ele se encolheu um pouco, como se sentisse dor, e isso foi o suficiente para Deodora notar. Ela se afastou o suficiente para encará-lo, o que o fez franzir a testa, sem entender. "Dona Deodora?"

"Oxe..." Ela não precisou de muita observação para perceber que a linguagem corporal dele estava diferente. Mais tenso, com os movimentos mais cuidadosos e os ombros mais juntos. Parecia mesmo estar com dor. "Tire a camisa." Com a reação surpresa dele, ela revirou os olhos. "Não é isso que você tá pensando, homem. Me obedeça, vá." Ela puxou a jaqueta de Pajeú, que reagiu e fez o que foi mandado, tirando a camisa. Um sorriso apareceu no rosto de Deodora ao ver o corpo de seu amante, olhando-o de cima a baixo, mas rapidamente sumiu quando ela notou machucados que iam dos ombros de Pajeú e desciam por trás. Sem aviso, ela deu a volta ao redor dele, parando de frente para suas costas nuas. Os ferimentos seguiam até o meio do seu tórax, e pareciam ser bem recentes, de tão vermelhos que estavam. Porém, a pele ao redor já parecia cheia de pequenas cicatrizes parecidas, como se aquilo fosse uma ocorrência normal. "O que foi isso? Se meteu em alguma confusão de jagunço?"

Pajeú se voltou para ela, ainda um pouco surpreso, e até envergonhado dela ter visto aquilo. "Dona Deodora, eu já falei pra senhora que eu não sou mais esse homem." Ele desdobrou a camisa, mas ela segurou seu braço e o virou de costas novamente antes que ele pudesse vesti-la.

"Pare com isso, oxe." Ela passou a mão de leve por um dos machucados, sentindo Pajeú respirar fundo com a dor - e também com o toque. "Quem foi que fez isso contigo?" A voz dela tinha saído muito mais vulnerável do que pretendia. Só que, diferente de antes, o tom de angústia era inteiramente genuíno.

"Por quê? A senhora tá preocupada?" Ele manteve o olhar para frente enquanto não respondeu à pergunta, sem se voltar para a dona de terras.

"Que preocupada o quê?" Deodora foi até a cozinha, pegando um pano e molhando-o com um pouco de água. Não era como um soro fisiológico ou um analgésico próprio, mas daria para o gasto. "Tu é meu guarda-costas, como é que vai me proteger se tá todo ferido?"

"Pode ter certeza que eu vou proteger a senhora. Sempre." Pajeú afirmou com toda a certeza do mundo, a seguindo com os olhos, enquanto ela voltava para perto dele. "Não carece disso, Deodora-"

"Ah, mas eu não vou deixar segurança meu ficar com o machucado todo infeccionado." Ela definitivamente poderia ter sido mais cuidadosa. Segurando o pano úmido, passou-o de leve nas feridas, limpando o que podia. Realmente não acreditava que, algum dia na sua vida, estaria cuidando de um matuto como ele, mas ali estava ela. "Agora, quem é que fez isso, Pajeú? Não pode deixar uma violência assim ficar desse jeito. É só me falar o nome que eu cuido disso."

"Eu não duvido de vossa capacidade. A senhora não é nada indefesa. Mas não é ninguém importante, não." Negou com a cabeça, tentando não expressar reação toda vez que Deodora encostava nas lesões.

"Não é importante, sei... era mais fácil se tu falasse logo quem é a pessoa. Agora se sente ali na cama, vá logo." Ela terminou de limpar os machucados e caminhou até a mesa, pegando sua bolsa e tirando um dos milhares potes que tinha ali dentro - uma mulher precisava estar preparada para tudo. Pajeú realmente tinha sentado na borda da cama, e ela foi atrás, tirando a tampa da pomada cicatrizante. Porém, no caminho, ela passou na frente do altarzinho para Padre Cícero.

Tinha uma corda ali.

Manchada de sangue.

Sendo quem era, Deodora não deixou o assunto para depois. "Por que que você fez isso?" Ela não perguntou se tinha sido ele, já deduzira isso. Queria saber o motivo, era mais importante.

Pajeú encarou a corda por tanto tempo que ela pensou que ele realmente não fosse dizer nada, mas então ele olhou para ela de um modo tão intenso que ela demorou um segundo para reciprocar a expressão. "Eu precisava me punir pelo que eu fiz. Pro meu Padim Padre Ciço me perdoar. Pra dor tomar lugar do que eu sinto."

"Oxe..." Ela desamarrou o lenço que estava em seu pescoço e o colocou na cama, antes de se sentar do lado dele. "E o que é que tu tá sentindo?"

"Uns sentimentos que eu não devia sentir, que não é só... atração. É o mal me atentando." Ele ficou quieto, receoso de que tivesse falado demais. Isso não era algo que se devia admitir para ninguém, a não ser Deus e seu santo Cícero. Principalmente não para Deodora, de todas as pessoas. De repente, ele foi se levantando. "Já tá tarde, é melhor eu levar a senhora de volta pra casa antes que fique um breu." Sua sorte era que Cirino tinha ido dormir na casa da doutora Candoca, então não precisava se preocupar se o filho estaria bem nesse escuro.

"Que breu, que nada." Ela o puxou de volta para a cama, pegando um pouco da pomada e passando nos machucados dele, tentando ignorar o que Pajeú tinha dito antes. Era melhor não focar nisso. Ele começou a falar que o produto ardia, e ela revirou os olhos, tendo que explicar. "É um creme que vai ajudar, tem Aloe Vera- você não deve saber o que é, deixa pra lá. Mas fique quieto antes que eu mude de ideia, não sou mulher pra ficar cuidado de homem." Pajeú ainda estava desconfiado, mas com o constante contato das mãos dela em suas costas, ele rapidamente esqueceu o incômodo, deixando que ela aplicasse o cicatrizante, em silêncio, enquanto ela, com maestria, mudava de assunto entre vários tópicos para se distrair - a maioria consistindo em reclamar do povo de Canta Pedra.

Nunca que Deodora admitiria isso, nem para si mesma, mas não gostava de vê-lo assim, sofrendo. Ele era um bruto, um jagunço que já devia estar acostumado com perigo e dor, mas não era a mesma coisa. Estranhamente, ela não gostava dele estar daquele jeito por causa dela. Sentia até um pouco de culpa, algo que não acontecia quase nunca, toda vez que pensava nele ter se autoflagelado. Porque, por mais que o insultasse na presença de outras pessoas, Deodora não queria ver Pajeú machucado. E, naquela noite, tinha começando a descobrir que o que sentia por ele também era mais do que só uma atração.

No Church In The WildOnde histórias criam vida. Descubra agora