brasília

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Os últimos quatro anos haviam sido difíceis.

Sentado na primeira fileira da aeronave, Nero batucava os dedos da mão direita sobre um livro repousado no seu colo. Havia parado de ler para tentar entender uma melodia que o acompanhava desde a noite anterior.

Diferente das suas composições mais recentes, a construção melódica que o atormentava dessa vez era mais suave, sossegada e quase experimental.

Talvez esse ímpeto criativo fosse reflexo do alívio sentido após assistir à cerimônia de posse do presidente Lula. Nero voltava de Brasília e sentia, pela primeira vez em quatro anos, alívio e esperança.

A maior parte do seu trabalho carregava um forte peso político, com críticas que desagradavam, além dos grupos bolsonaristas, parte da esquerda, por rejeitar com firmeza os seus impulsos consumistas. Ainda assim, ele conseguia se destacar em meio ao cenário musical e intelectual do Rio.

Ansioso para chegar ao seu apartamento e pegar o violão, decidiu - com o objetivo de distrair a atenção do passar das horas - voltar a ler o livro que pesava sobre o seu colo: A alma encantadora das ruas (1908), do jornalista brasileiro João do Rio (1881-1921).

Em meio às primeiras páginas, alguns trechos lhe pareceram o encaixe perfeito para a melodia que continuava insistente.

"A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento (...). A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humana.

(...)

Comete crimes, desvaria à noite, treme com a febre dos delírios, para ela como para as crianças a aurora é sempre formosa, para ela não há o despertar triste, quando o sol desponta e ela abre os olhos esquecida das próprias ações, é, no encanto da vida renovada, no chilrear do passaredo, no embalo nostálgico dos pregões - tão modesta, tão lavada, tão risonha, que parece papaguear com o céu e com os anjos."

Nero sabia disso. Flanava pelas ruas do Rio de Janeiro antes mesmo de começar a sua carreira como compositor.

O que ele queria entender, após a catártica experiência do dia anterior, era como as ruas de Brasília funcionavam. Como uma cidade que havia sido toda projetada e atendia principalmente a funcionalidades objetivas podia servir de palco para um dia como o que aquele que ele tinha vivido?

A resposta estava na letra que ele comporia horas mais tarde.

Ao chegar no Rio, Nero pegou um táxi até o seu apartamento com apenas uma coisa na cabeça: juntar aquela melodia suave à sua tentativa de compreender a cidade de Brasília.

Subiu os andares pelo elevador, procurou a chave da porta principal e a abriu com certa dificuldade. Carregava uma mala, a sua mochila e, claro, o seu violão.

Quando entrou, sentiu o cheiro do mar carioca e, de olhos fechados, relaxou os ombros imediatamente. Em seguida, pôs a mala e a mochila no chão e pegou o violão que ficava próximo ao sofá.

Sentou-se e começou a dedilhar uma melodia ainda bagunçada, com acordes aleatórios, tentando passar para o violão o que estava na sua cabeça há horas.

–– Brasília... — Cantarolou baixinho, tentando acompanhar os seus dedos com a voz.

Ao encontrar algum padrão entre tantos testes, pegou um caderno solto no meio de cinco livros espalhados pela mesinha de canto e começou a anotar.

— Cidade que um dia eu falei que nem era Brasil. — Sussurrou enquanto escrevia e soltou uma riso baixo ao se lembrar de todas as emoções do dia anterior.

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