Capítulo único

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 Existe uma grande floresta em Quebec, Canadá. Bem ao fundo dessa floresta, há uma região esquecida pelos humanos e escondida por uma entidade. Dentro dessa região, há uma cabana de madeira, simples, mas aconchegante.
A cabana é o lar de algumas pobres almas perdidas que tiveram o azar de despertar algum interesse na tal entidade. "O Operador". Entre essas almas, está Shiro... uma alma solitária e cansada que dá o melhor de si para tentar cuidar de seus parceiros.
Nesse dia em específico, ele havia encontrado o diário que trouxera consigo desde que foi trazido àquela cabana pelo Operador há muitos anos atrás, e, embora tivesse sido ele mesmo a trazer o diário, ele só o abriu uma vez, quando a foto de uma garotinha caiu de lá de dentro e ele sentiu uma sensação horrível em seu peito... Ele nunca teve coragem de ler o diário, pois sabia que ali encontraria seu passado, coisa de que não se lembrava e não tinha certeza se queria lembrar.
O homem encarou o diário por alguns longos minutos... talvez minutos até demais. Já faziam alguns anos desde a última vez que sequer havia visto aquele diário, e não podia negar que a curiosidade o afetava um pouco.
Ele suspirou fundo e enfim abriu o diário, que estava estranhamente bem conservado.

A primeira página era de 2003, escrita por ele mesmo em seus 14 anos, contando alguns relatos e insatisfações de sua vida cotidiana. Visto por alguém que não lembrava do próprio passado, aquelas coisas não pareciam nem um pouco normal para um adolescente passar, ele imaginava que pelo menos em sua infância ele teria tido uma vida melhor, mas aquele diário apenas confirmava que não.

Acontece que a vida de Shiro nunca foi nem um pouco normal.

Havia uma pequena vila em Shizuoka (Japão), na qual seus cidadãos acreditavam fielmente em suas próprias lendas e mitos, logo, eles tinham muita cautela e tomavam precaução em tudo o que faziam, desde oferendas para entidades, à toque de recolher para que não fossem comidos pelos espíritos da noite caso estivessem nas ruas. Então, foi uma enorme surpresa e espanto quando, na noite do dia 25 de Agosto de 1989, nasceu um menino peculiar. Seus cabelos eram brancos feito neve, a cor dos olhos lutavam entre o azul de um olho já sem melanina e o vermelho do sangue que refletia nele, formando um lilás bonito porém assustador, e sua pele extremamente pálida, o que não era tão comum da região, já que os cidadãos acreditavam que tomar sol rejuvenescia a alma, e seus bebês nasciam com "cor de saúde". Àquele menino parecia não ter cor alguma, tão branco que dava para ver as veias sem tanta dificuldade.
A vila inteira automaticamente julgou que aquela família havia sido amaldiçoada pelos deuses da lua, visto que ali naquela região, pessoas albinas eram consideradas demônios(youkais) e traziam azar.
A teoria se espalhou ainda mais quando descobriram no dia seguinte que o pai do bebê havia morrido em um acidente na cidade grande quando estava tentando voltar para a vila e ver seu filho nascer.
O bebê foi nomeado Shiro Tamashi. Shiro (白), significa branco, um nome dado sem muito sentimento ou sequer esforço. Sua família acreditava que se fizessem rituais corretos, seriam capazes de expurgar o demônio do garoto e ele finalmente seria uma criança normal, ganhando um nome digno.

Durante seu crescimento, Shiro foi colocado em diversos testes de resistência e rituais que não eram nem um pouco pacíficos. Aos 7 anos, sua mãe veio a falecer de uma doença genética e seus avós acreditavam que aquilo era apenas mais um agouro que o garoto havia trazido para a família, culpando-o pela morte da própria mãe. A partir daí os testes começaram a ficar piores e ele passava por variadas torturas, desde ser forçado a ficar no sol por muito tempo, na esperança de os deuses do sol abençoarem seu corpo, até ficar preso por dias no sótão de casa, sem comida ou água, para que o demônio sentisse que aquele corpo não era forte suficiente para ele. As torturas podiam se variar dependendo dos dias, mas todas as noites ele era obrigado a passar pelas chibatadas, era como um ritual sagrado. Shiro apenas aceitava tudo com obediência, acreditando fielmente que tudo aquilo valeria a pena no final, ele acreditava que seria amado pelos seus avós e que seria normal como todas as outras crianças, acreditava que as outras crianças finalmente o aceitariam quando ele se tornasse normal e ele teria muitos amigos.
Quanto mais crescia, mais as chibatadas passavam a sair do limite das costas e tomar o resto do corpo, e mais as torturas passavam a ser insuportáveis.
Ele era um garoto triste, mas extremamente esforçado, querendo sempre provar para seus avós que ele poderia ser uma ótima pessoa, mesmo com o demônio em seu corpo. Fazia gestos de bondade pela vila, mesmo que visto com maus olhos. Na escola não era diferente, as crianças não queriam sequer ficar perto dele.
Como a escola ficava na cidade grande, ele era o único a ir a pé, pois as carroças que levavam as crianças da vila, não permitiam que ele subisse, com medo de que condenasse todos a morte.
Aos seus 14 anos, ele achou um livro perdido na estrada entre a vila e a cidade grande. Parecia um caderno de anotações. Por alguma razão, ele se sentiu feliz em ter achado aquele caderno, que por muito tempo foi seu único amigo, "ouvindo" as reclamações e os desabafos do garoto. Não tornava sua vida menos ruim, mas tornava no mínimo suportável.

Aos 18 anos, Shiro se encontrava conformado com o fato de que jamais seria capaz de se tornar normal... Parecia que tudo havia sido em vão... Ele tinha cicatrizes por todo o corpo, tanto de chibatadas quanto de queimaduras de sol. Algumas partes do corpo haviam queimaduras de terceiro grau, de ataques com água fervendo vindas de alguns cidadãos da vila. Seu rosto também havia sofrido com as cicatrizes e ele já não aguentava mais se olhar no espelho...

Em um dia comum de faculdade, quase todos os alunos estavam em suas devidas salas de aula. Quase todos. Shiro se encontrava no terraço do edifício, olhando para baixo, talvez perto até demais da borda, sentado. Ele fechou os olhos por alguns segundos, sentindo a brisa fresca.

- É um ótimo lugar para fumar. – Disse uma voz feminina vindo de alguns metros atrás dele.

O corte repentino do silêncio o assustou um pouco, fazendo com que o rapaz olhasse para trás. Avistou uma jovem que nunca havia visto antes. Aparentava ter sua idade, baixa, olhos castanho escuro, o cabelo preto em um corte chanel com franjinha e... uma pele pálida. Estranhamente pálida. Claro, não era tão pálida quanto ele, mas ela "aparentava" ter ao menos alguns problemas de saúde. Ao menos as olheiras escuras embaixo dos olhos dela gritavam isso. Ela era muito bonita, o que fez com que o rapaz corasse, o que não era tão difícil de acontecer devido a falta de melanina. Ela devia ser aluna nova.

- Eu não fumo. – Retrucou rapidamente ao perceber que havia ficado tempo demais encarando em silêncio.

- Que pena. – Ela disse novamente, se aproximando e sentando ao lado do rapaz, bem na borda do edifício e tirando um cigarro de sua mochila, junto de um isqueiro. Shiro observou calmamente toda movimentação que a garota fazia.

Um silêncio desconfortável se formou ali entre os dois enquanto a garota fumava e olhava para o céu, antes de olhar para ele, com uma expressão entediada.

O nascer de uma Alma Solitária - A OrigemOnde histórias criam vida. Descubra agora