A Amiga na Junqueira

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Logo que nossa primeira e única filha completou sete anos, decidimos que era hora de fugirmos do caos da cidade, da poluição e do nosso apartamento pequeno para proporcioná-la uma infância mais livre no interior. Ambos viemos de cidades pequenas antes de nos mudarmos para a capital, e concordávamos que a experiência de crescer no campo faria bem para Nina, nossa menininha.

Passamos cada ano desde o seu nascimento juntando dinheiro para que pudéssemos comprar a casa dos sonhos: Um palacete no campo com vários quartos, um jardim imenso e há 2 km de distância do vizinho mais próximo. Eu e meu marido trabalhamos em home office e o trajeto até a escolinha de Nina, que ficava no município ao lado, não dava mais que 30 minutos de carro. Era o cenário perfeito para que nossa família tivesse uma vida mais saudável e para que pudéssemos nos aproximar enquanto pais de nossa filha, que sempre fora uma criança "excêntrica", para dizer o mínimo. Nina não era muito chegada a amizades. Gostava mais de estar trancada dentro do quarto olhando para o teto do que brincar com as crianças do nosso antigo prédio. Raramente era convidada para as festinhas de aniversário dos colegas, e quando era, preferia ver o capeta a comparecer. Até de nós ela sempre se manteve distante. Era calada, quase muda. Uma vez desconfiamos que nossa filha pudesse estar dentro do espectro autista, mas nenhum psiquiatra pôde confirmar as nossas suspeitas. Aparentemente ela só era assim mesmo, "mais na dela".

A casa era velha, caindo aos pedaços. Tinha todo tipo de problema hidráulico e elétrico que se possa imaginar. Tirando isso, era perfeita. O preço era bem menor do que o que tínhamos calculado, muito provavelmente por causa de todos estes problemas estruturais que eu e meu marido daríamos um jeito pouco a pouco, com o dinheiro que sobrou das nossas economias.

O jardim era lindo, mas também precisava de cuidados urgentes. A única coisa que não mexeríamos nele era uma junqueira alta, maravilhosa, que devia estar ali crescendo há no mínimo uns 200 anos. Era uma árvore frondosa que sombreava as varandas da casa e que tinha uma corda grossa com vários nós amarrados em um de seus galhos. Era o lugar favorito de Nina. Todos os dias ao pôr do sol ela subia na corda e ficava se balançando por horas, sorrindo de orelha a orelha. Meu marido disse a ela que colocaria outra corda e faria um balanço com a que já estava lá, mas ela bateu o pé. Disse que não. Ela gostava de se balançar na corda exatamente do jeitinho que ela era. Não sendo a nossa filha a criança mais ativa do mundo, não discutimos. Estávamos felizes que pela primeira vez na vida ela tinha encontrado prazer em alguma atividade ao ar livre. A única coisa com a qual nos preocupávamos e que era motivo de constantes birras, eram os horários que Nina decidia se balançar nesta corda. Sempre ao pôr do sol, às vezes até mais tarde. O estopim foi quando descobrimos que nossa filha nos esperava dormir e saía escondido para se balançar na corda no meio da noite. Passamos a trancar todas as portas e a ficar mais atentos, mas ela sempre dava um jeito de escapar até o jardim. Se ouvíamos algum barulho e olhávamos pela janela, lá estava ela: se balançando na maldita corda em plena madrugada. Sentamos os três para termos uma conversa séria: O jardim ainda estava cheio de mato! Poderia haver cobras, sapos, aranhas, plantas com espinhos... Além do mais, uma menininha sozinha e sem supervisão dos pais tão tarde da noite estava vulnerável a tudo! Usamos todos os argumentos que uma criança de sete anos poderia compreender, ainda assim ela estava impassível. Continuaria indo se balançar na corda durante a madrugada ainda que eu e meu marido a proibíssemos.

Curiosos sobre o porquê dela trocar o dia pela noite nessa brincadeira estranha, perguntamos a ela o que a atraía tanto até a junqueira depois que o sol se punha, quando mocinhas da sua idade já deveriam estar na cama. Foi aí que ela nos disse, com a maior naturalidade do mundo:

— Porque minha amiga, que também tem a minha idade, só aparece para brincar depois que escurece!

Amiga? Que amiga? Sempre que a víamos balançando na corda da junqueira ela estava sozinha! Além do que, nossos vizinhos mais próximos moravam consideravelmente longe. Duvidei que alguma criança conseguisse sair escondido altas horas da madrugada sem que seus pais notassem, andasse kms até o meu quintal e ainda brincasse com a minha filha sem que eu percebesse a sua presença. Impossível, absolutamente impossível. Eu e meu marido nos entreolhamos... Com aquele olhar de "Coitadinha, não é autista, mas esquizofrênica". Nessa hora Nina bateu com as duas mãos na mesa, revoltada:

— Vocês não acreditam em mim, né? Por que vocês não vêm conhecer ela? Ela é minha ÚNICA amiga no mundo! Não é justo que vocês queiram me afastar da minha ÚNICA amiga! Mamãe, papai...

E começou a chorar copiosamente. Tentei trazê-la de volta à realidade:

  — Minha filha, nós te observamos todos os dias brincando sozinha naquela Junqueira! Não há amiga nenhuma! Talvez uma amiga imaginária, mas não uma amiga de verdade! Se ela fosse real nós a teríamos visto e ela, como qualquer menininha normal, não sairia para brincar essa hora da noite! 

O drama foi ainda maior. Meu marido, que sempre fez o papel de "good cop" nessa relação parental:

— Não é que a mamãe e o papai estejam duvidando de você, filha, mas você tem que concordar que essa situação toda é um pouco estranha, não é verdade? Se você tem uma amiguinha, eu e sua mãe adoraríamos conhecê-la! 

— Posso perguntar para ela se ela quer conhecer vocês, se vocês me prometerem que vão deixar eu continuar brincando de balanço depois que escurecer!

— Claro, Ninoca – disse o papai, tentando acalmar os ânimos da filhinha – Ela já está lá fora? Vamos lá conhecê-la!

— Uhum – balançou a cabeça de forma afirmativa, limpando as lágrimas dos olhinhos – Mas antes preciso perguntar para ela se ela quer conhecer vocês. Ela é muito tímida, não aparece para qualquer um... Talvez seja por isso que vocês nunca tenham visto minha amiga da junqueira. Ela se esconde quando gente estranha está olhando.

— Tá bem, eu e a mamãe estaremos aqui esperando.

Nina levantou da mesa correndo e foi até o pé da junqueira. Eu e meu marido a observávamos da janela. Enquanto ela trepava na corda, usando os nós como degraus, olhava para cima e mexia os lábios como se estivesse conversando com alguém. Nessa altura do campeonato, eu e ele já havíamos chegado a conclusão que nossa filha era caso psiquiátrico. Depois de alguns minutos desse diálogo bizarro entre ela e a corda, Nina gesticula com os dedinhos pedindo que fôssemos até ela. Enquanto andávamos em direção a árvore, ela se balançava e gargalhava cada vez mais alto, olhando para o nada, muito satisfeita.

Ao chegarmos aos pés da árvore conhecemos, horrorizados, a tal "amiguinha":  nossa filha não estava pendurada e se balançando numa corda grossa e cheia de nós...

Ela estava pendurava e se balançando, abraçada nos ombros do cadáver enforcado de uma menininha... que sorria e piscava como se ainda vivesse. Nina usava o corpo dela de balanço e pelas gargalhadas escandalosas de ambas, a morta não parecia se importar. Sorria de fora a fora, mostrando os dentes podres entre os lábios decompostos...

— Viu, Mamãe? Ela também adora brincar de balanço! 

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⏰ Última atualização: Jan 09, 2023 ⏰

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