Capítulo 01: Terça-feira

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Quando o terceiro soco chegou ao estômago de Vinicius, o primeiro punho ainda não havia deixado seu rosto. O som abafado de vozes que pareciam um concerto de violinos desafinados impedia o menino de entender os próprios pensamentos. Agora, algo mais forte atingiu sua perna direita. Ferro, concluiu enquanto o corpo contorceu-se involuntariamente no chão sob o tilintar da barra de metal que ainda ecoava. Uma superfície plana desabou sobre seu rosto com demasiada violência. O livro de matemática sempre foi o mais pesado e sempre lhe trouxe dor de cabeça. Suas incontáveis páginas, tão leves separadas, pareciam um sólido tijolo quando unidas. Suas mãos voltaram-se para o rosto na intenção de se proteger. Pôde sentir algo quente e denso que escorria de seu nariz e tocava sua boca. O gosto vermelho ferroso, que já era tão conhecido seu, tomou sua língua. Mais um soco? Um chute? Tudo começou a ficar confuso. Vinicius tinha certeza de duas coisas: a primeira, sentia dor, embora amortecido pelo nível de consciência. A segunda, seria impossível esconder as marcas quando chegasse em casa. O que antes era medo, transformou-se em desespero.

- Fique no chão, viadinho! - disse uma voz rouca como quem come areia pela manhã.

- Se eu te ver desenhando essas coisas de novo - arfou - eu vou te matar! - a voz era densa, mas completamente ofegante. Finalmente, cansaram.

O tempo parecia correr de forma diferente, mais lentificado e menos linear. A partir daí, Vinicius foi abençoado com a perda de consciência, seguiu-se o breu.



A imagem no espelho revelava o que o menino mais temia.

- Parece que você foi atropelado.

- Eu sei - disse Vinicius lavando as mãos.

Os olhos escuros ainda brilhavam, embora cercados de um vermelho arroxeado quase fúnebre.

- Tuas roupas estão imundas!

- Eu sei, Otávio! - subiu o tom.

Do nariz, ainda corria um filete vivo, vermelho, que contornava com leveza os lábios grossos e levemente inchados do menino e gotejava sobre a pia de alumínio.

- Deveríamos já ter ido pra sala!

- Pode ir, Otávio - jogava água nos braços e pernas, esfregando-se com as mãos.

- Se você não for agora, vai ter que esperar a próxima aula no pátio!

- Chega, Otávio! - Vinicius segurava firme, com as duas mãos, na extremidade da pia - eu não tenho o que fazer! - foi tomado pelo súbito impulso de chorar, desabou.

Otávio não estava tão acostumado com o choro do amigo. Aproximou-se devagar, colocou sua mão direita suavemente sobre a cabeça de Vinicius e afagou. Os curtos cabelos encrespados do menino não estavam tão macios por conta da quantidade de poeira e terra, mas a sensação ainda era agradável para ambos.

- Respira fundo - a voz era doce e carregava consigo o peso de ser testemunha do ato.

- Eu não sei o que fazer - as lágrimas caíam continuamente, semelhantemente a um buraco numa barragem, soluçava - eu estou cansado, Ota - a voz trêmula falhava, abafada, ofegante.

- Vamos falar com a professora Julia.

- De novo? - as sobrancelhas subiam.

- Ela te ajudou antes, não?

- Ela tentou uma reunião com os pais do Carlos e do Henrique. Nenhum deles apareceu. Não resolveu nada!

Por alguns instantes, o único som audível era o da água caindo, em cascata, da torneira aberta da pia. Os dois meninos, parados, se entreolhavam na esperança de encontrarem a solução miraculosa que mudaria suas vidas. O rosto de Otávio se iluminou:

- Vamos revidar!

A ideia era tão absurda para ambos que, pela primeira vez no dia, sorriram. Os dentes de Vinícius ainda tinham uma cobertura avermelhada de sangue.

- Imagina! Eu, quebrando os dentes do Henrique no soco!- a boca se alargava em um sorriso tímido.

- "Você pode ser mais alto que eu, mas eu vou te bater até você pedir desculpas ajoelhado, estando de pé, seu merdinha!" - Otávio levantava os punhos cerrados de forma desengonçada, simulando uma posição de luta que mais parecia uma dança de salão.

- "Henrique, eu vou te partir em dois, que nem eu fiz com o Carlos!" - Vinícius levantava as mãos para o céu, juntamente com a perna direita - esse é o da garça!

- Vini, isso mais parece balé - interrompeu a ilusão, gargalhando.

- Eu vi num filme que funcionava.

- Acho melhor ficar só no soco e chute normais.

Os meninos giravam no banheiro como se estivessem num octógono em dia de final de MMA. O banheiro do vestiário da escola era sempre vazio. Iluminado somente durante o dia, por conta da luz do sol que invadia o ambiente através das janelas altas com vidros quebrados. O espaço mais amplo e as cabines abertas, com os canos quebrados, sem chuveiros, traziam sensação de abandono. Aos risos, Otávio completou:

- Vamos embora, eu te ajudo a lavar o rosto - o menino pegou, de sua mochila, uma pequena toalha do tamanho de uma folha de caderno, umedeceu com a água da torneira. Tocou gentilmente as bochechas empoeiradas de Vinicius que franziu o cenho em dor - desculpa.

- Tudo bem - sua voz ia perdendo a leveza.

Após alguns segundos de silêncio enquanto o amigo esfregava seu rosto com a própria toalha, juntou forças para grunhir:

- Obrigado, Otávio.

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