Capítulo único

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O pincel roubava o brilho da Estrela Mãe e o espalhava no espaço em branco, enquanto valsava, elegantemente solitário, no canto superior da tela quase vazia. Os movimentos suaves de seus dedos largos traduziam seu silêncio em imagens claras, nada abstratas, julgando ser possível transmitir tudo aquilo que ouvia, e elucidar da mudez de seu mundo. Fazia, aos poucos, o sol nascer por trás de uma montanha adormecida, que obsequiava um calor imaginário. Nem um tanto palpável, entretanto, igualmente afável. O artista girava os pulsos no ar e o pincel dançava a arte que lhe foi roubada na infância. Traçando finas linhas solares em um tom avermelhado de mesma matização de seus lábios — rachados pelo rigoroso frio do inverno presente no lado de fora do estúdio.

A paisagem crescia diante dos olhos que resplandecia admiração. No fundo da sala, Kenji observava o de cabelos claros emanar tudo o que sentia através das cores de suas tintas que, desde que o conhecia, expremia a voz de Aone em uma frequência de três mil e quinhentas hertz coloridos; sua única forma de ser ouvido pelo mundo. E Futakuchi podia ouvi-lo: o riso não emitido pelos lábios alheio presente nos raios solares; as lágrimas não choradas nas águas que jorravam na queda d'água que dividia a montanha em duas e, também, podia sentir o cansaço de sua mente na calmaria do rio que contornava o pequeno vilarejo conhecido por ambos. Kenji podia afirmar que, naquela tarde, naquele momento silencioso onde nem mesmo o ruído da chuva ousava-se fazer-se presente, no pequeno estúdio do aspirante a pintor, Aone Takanobu estava realmente feliz.

Estava tão absorto em sua arte que não foi capaz de perceber que o sol, que lhe servia de luminária, estava desaparecendo atrás de si, dando espaço ao seu amante para iluminar melancolicamente as horas que estavam por vir. Foi quando Kenji ligou a lâmpada falhada do estúdio que Aone percebeu, em meio ao seu transe inspirativo, o quanto estava escuro lá fora. De fato estava tarde, mas não tão tarde que não pudesse chamar Kenji para um dança, ali mesmo no estúdio, antes de voltarem para casa.
Seus dedos, ainda sujos de tintas, chamaram a atenção do mais baixo, o convidando para aquela prosa enquanto Tchaikovsky testemunhava baixinho, no toca-discos que Futakuchi insistiu em trazer para aquele lugar imune à sons. Mas Kenji gostava de música e também sabia que Aone também gostava das sensações que as vibrações d'O Quebra-Nozes, causava em seu corpo, fazendo com que sua pele se arrepiasse toda vez que começava o ato dois do ballet, embora jamais fosse admitir isso algum dia. As mãos de Aone puxou a dança alegremente, contando para o outro sobre a decisão que havia tomado. Kenji sorriu e juntou-se ao artista, com os dedos atrapalhados, mas sem perder o ritmo. O Lago dos Cisnes começou a tocar e as lágrimas começar-se-iam a fluir ao escutar uma música tão bela, se não fosse o sorriso de Aone ao falar que estava de partida.

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