- Panquecas e Melado -

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"Às vezes, tudo o que precisamos está ao nosso redor, apenas estamos cegos demais para enxergá-lo."

ܟ𝐇𝐀𝐑𝐑𝐘މ


07/01 — Manhã⸝⸝

Uma manhã cinzenta de inverno, a neve caía em quantidade moderada do lado de fora da casa, cobrindo o quintal e a rua com uma fina camada branca. O clima perfeito para não sair de casa e aproveitar a simplicidade da sua própria residência, talvez tomar um chocolate quente e assistir algo na televisão, sem se preocupar com mais nada.
  Desperto ao som do sexto, de dez alarmes que eu havia programado na noite passada para a amanhã seguinte, visando não acordar tão tarde como tenho feito em todos os dias desde o início das férias. Aquele era o meu último fim de semana antes do retorno das aulas, das pessoas inconvenientes e barulhentas que eu sou obrigado a conviver — ou suportar — desde os meus doze anos de idade. A minha sorte é que, no próximo ano, eu já estarei preocupado com a faculdade, não com o quão suscetível a piadas eu estou por levar minha própria comida.

  Mesmo desnorteado, meu cérebro ainda consegue processar que eu estou vivo, e não me resta nada além de viver. Devagar, eu caminho pelo piso de madeira com pés calçados com meias executivas brancas que eu roubei do armário do meu pai, tempos atrás. Cruzando o corredor dos quartos, chego até o banheiro e pego a minha escova de dentes, azul, entre as demais escovas. Aperto o tudo do creme dental, passando a pasta nas cerdas levemente desbotadas da escova e logo passando-as pelos por cima dos meus dentes. De vez em quando, eu me olho no espelho, alternando o foco entre os meus olhos pretos e a pia. Os meus escuros e nada arrumados cabelos lisos se punham em frente à minha testa em uma franja desarrumada, o que sinceramente, me deixa agoniado. Então, penteio o meu cabelo com uma escova de cabelos da minha mãe, feita em madeira e, comparada com a do meu pai e a do meu irmão, era a única eficiente da casa.

  Terminando as higienes, volto para ao meu quarto, abrindo o meu armário para buscar novas peças de roupa para vestir. Acabo por escolher um moletom preto com estampa da NASA, uma calça sarja creme e botas de couro que eu ganhei de natal da tia Florence, que sai da Itália uma vez por ano para nos visitar na época de festas e depois se isolar novamente em Verona, com o seu marido, um empresário quinze anos mais velho que ela. Vestido, eu desço pelas escadas, atravessando apressado a sala de estar vazia e indo até a sala de jantar, onde a toda a minha família extremamente nuclear e padronizada estava reunida para tomar café da manhã. Anthony, meu pai, comia as suas banana polvilhadas com aveia; Rosalie, minha mãe, bebia apenas uma xícara do seu latte macchiato; Oliver, meu irmão mais novo, comia omelete com bacon e suco de laranja. Parecíamos ter saído de algum filme estadunidense dos anos setenta.

  — Bom dia! — anuncio a minha chegada, antes de puxar uma cadeira e me juntar a eles na mesa.

  — Acordou tarde — meu pai responde ao se levantar e bater acidentalmente um dos joelhos na borda da mesa. Porcaria!
  — Está tudo bem? — diz a minha mãe, em preocupação.

  — Não se preocupe, isso acontece.

  Eles pareciam tão felizes que chegava a doer, sempre causaram inveja nos amigos por serem o casal que todos queriam fazer parte. Estão juntos há vinte e cinco anos e nada parece abalar a relação deles.
  — Eu tenho que ir, senão o patrão me mata — bem humorado, disse enquanto levava o prato usado até a pia.

  O mais velho rodeou a mesa, espalhando beijos pelas testas de seus filhos e esposa, se despedindo de todos antes de sair da sala, ajeitando a sua chamativa gravata vermelha com uma estampa de bolinhas azuis. Ele a usa há anos, era quase como um personagem de desenho animado.  O meu pai trabalha como analista de dados em uma empresa de eletricidade, então tudo o que ele faz é sentar em uma mesa durante oito horas, mexer em um computador e depois voltar para casa. Talvez eu siga por esse caminho, caso eu não consiga encontrar uma faculdade interessante para cursar.

  — Aquela gravata é engraçada — diz a mãe, rindo do visual do marido.

  — Não é? — digo, rindo e concordando com ela.Eu nunca falei nada, mas já que tocou no assunto...

  — Eu acho ela legal, eu usaria — Oliver entra na conversa.

  — Você tem um gosto bastante duvidoso.

  Oliver é do tipo que realmente não se importa com a opinião alheia, desde que o seu interior diga que ele está espetacular. Seu estilo se resume a ser ora hippie, ora surfista, ora poeta estereotipado. Não é de se esperar nada diferente de um garoto de treze anos, era até cômico em certas situações. Certa vez, em uma festa à fantasia, enquanto todas as outras crianças estavam vestidas de monstros, ele se fantasiou de sistema solar. Adivinhem quem pintou os planetas.

  A conversa fluiu enquanto o horário não passava, mas, como o tempo não para, chegou o momento em que cada um seguiria o seu rumo. Oliver tinha que visitar um amigo de escola e mamãe iria levá-lo, já que também a casa ficava no caminho para o trabalho. Após mais um momento de despedida, ambos saíram e eu me vi sozinho, mais uma vez. Era como se todos ao meu redor vivessem de fato, enquanto eu apenas via a vida passar sem fazer nada.

  Meia hora se passou desde que partiram, e agora, estou sentado no sofá da sala, assistindo a Jogos Vorazes pela milésima vez — a cena da colheita nunca perde o impacto — e comendo um pouco de sorvete de chocolate em uma tigela de cerâmica. Solto um suspiro cansado, checando as horas mais uma vez no relógio da tela de bloqueio do meu celular. Quando me dou conta de que ainda são nove horas, eu desligo a televisão e levanto do sofá. Sem rumo, muito menos ideia do que fazer, eu me apronto, substituindo o meu moletom por um casaco cinza e uma blusa branca por baixo.

  Então, quando estou prestes a sair, um som de patinhas se movendo rapidamente penetrava nos meus ouvidos. Como era de se imaginar, Apolo, o meu Husky Siberiano de olhos negros, estava agitado pelo som do carro que que saiu da garagem. O cachorro estava deitado atrás da porta, choramingando enquanto esperava que voltassem.

  "Não somos tão diferentes assim" eu penso, imaginando o que se passava na cabeça dele.

  No fim, estávamos na mesma situação.

  — Vem, filho. Vamos dar uma volta por aí.

  No corredor atrás da porta de entrada, há um pequeno armário com portas de vidro, onde guardamos todo o tipo de tranqueira que queremos nos livrar quando entramos em casa. Dentro dele, há um pequeno espaço reservado para a coleira de Apolo, comprida e escura como os seus olhos. Prendo-a no pescoço peludo do cão, não deixando muito apertada para que ele não se machucasse. Após me certificar de que estava firme o suficiente para não precisar apertar mais, eu giro a maçaneta da porta e sou praticamente arrastado por Apolo para o lado de fora da casa. A neve fofa reluzia a luz do sol e o canto dos pássaros parecia mais distante do que antes.

  Recuperando-me daquele puxão, retomo a postura e tranco a porta com as chaves reserva que ficam escondidas debaixo de uma estatueta cerâmica em formato de rena que fica no quintal e a guardo no bolso direito da calça. Sigo com o meu caminho pela rua. Estava tudo tão vazio. Talvez fosse pela hora, pela temperatura, ou pelos dois fatores juntos. Afinal, que louco estaria na rua às oito da manhã, com um frio de quatro graus negativos?
  Além de mim, claro.

  "Não sei se vai estar aberto, mas talvez eu possa levar ele para um lugar legal" — penso, olhando para Apolo enquanto viro a esquina.

𖥻 Winter ❄️⸼ ࣪ ۰Onde histórias criam vida. Descubra agora