Crianças do Crepúsculo

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O tão esperado dia chegou. Finalmente. Aguardava como um prisioneiro pela sonhada liberdade.

— Parabéns pela venda, Jonas. Mais dois nesse valor e você bate a meta.

Fez que sim com a cabeça dando um sorriso amarelo, enquanto guardava sua agenda na bolsa. Torcia para que o patrão não começasse outra palestrinha motivacional. Era sexta-feira, só queria ir pra casa. Já deu de ouvir as vozes insuportáveis de seus colegas ao redor. Vendedores safados. Mentindo ao telefone, prometendo financiar uma casa que nem existe. Mas ele não era um santo. Antes de ontem, conseguiu vender um Honda Civic para uma senhora que pretendia financiar. O carro era para o filho, que pagaria as prestações como motorista de aplicativo. Financiar significa receber o carro imediatamente e pagar o valor em parcelas. Mas nunca existiu um carro pra começo de conversa. Ele o prometeu, mas no final, entregará uma carta de crédito. Quer dizer que ela receberá um valor maior que o investimento, mas só quando pagar a última parcela. É claro que ela não pode pagar, já que não receberia o carro para o trabalho do filho, mas isso é problema de outra pessoa. Caso ela tenha alguma reclamação, o setor jurídico existe pra lidar com isso.

Ele deixou o escritório. Os pisos de madeira do corredor fazem barulho a cada passo. Era um casarão antigo. Um dos muitos espalhados nesse lado da cidade, que hoje são usados como escritórios. Passou em frente à sala do setor jurídico. Estava aberta. Lá estava ela. A senhora com o filho. A reconheceu devido a foto que usava no perfil do aplicativo que negociavam (Sempre por ligações. Nunca por áudios ou mensagens, pois ela poderia usar como prova de que foi lesada). A coitadinha chorava pedindo que o dinheiro fosse ressarcido. Vai ser. Provavelmente daqui a algumas semanas ela vai conseguir reaver o dinheiro, ou parte dele. O valor de entrada que ela pagou iria para o seu bolso de qualquer forma e é assim que funciona. Se fizer diferente o patrão vai esculachar.

A beira da escadaria havia um balde cheio d'água, a chefe de limpeza esfregava o piso. Honesto trabalho duro. Sem precisar enganar ninguém. Por isso ele a respeitava. Uma das poucas pessoas com quem gostava de conversar na empresa.

— Bom fim de semana, Jonas.

Ele sorriu acenando ao descer a escadaria. Não conseguia parar de pensar no choro da senhora. Será como a Neusa? Lembrou-se do caso com o outro vendedor. O cara passou a lábia numa senhora que desejava comprar um apartamento. Ela tirou dinheiro de onde não tinha e no final não foi ressarcida. Poucos dias depois fora encontrada morta. O jornal disse que ela se matou no amanhecer de uma terça-feira. O vendedor pediu demissão no dia seguinte.

Abriu a porta de saída e passou por baixo de uma escada. Um funcionário da distribuidora de energia elétrica mexia na fiação.

Deu um muxoxo.

— Precisam fazer isso bem aqui na porta?

— Desculpe, senhor. É difícil se posicionar nesse espaço. — O bairro é antigo, cheio de casas coloniais e ruas estreitas — Existe uma irregularidade aqui. Estou tentando resolver.

"Ótimo", pensou. "Agora além de golpes em velhinhas, também vou me associar a uma empresa que faz gato".

— Meus sete anos de azar vão pra sua conta — disse num tom amigável.

O funcionário riu.

E ele seguiu pelo caminho de casa.

O céu estava alaranjado. Não é mais dia, e nem é noite. Há uma certa melancolia nesse horário. Pensou em Neusa, que se matou num amanhecer. Quando não era dia, nem noite. "Quando as coisas ficaram desse jeito? Nunca quis ser um canalha. Quando criança eu sonhava em ser um super-herói. Acho que fiz o caminho contrário."

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