Capítulo Único

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         - Muito obrigada, tenha uma boa noite! – enquanto o último cliente do dia deixava a loja, contei o dinheiro do caixa. 100, 200, 300 reais. Ainda faltavam alguns pagamentos da paróquia do bairro, e da igreja da cidade vizinha. Caso me paguem, nesse mês não vai faltar dinheiro.

         Saí de trás do balcão, tranquei a porta da frente e comecei a organizar as velas nas estantes. Já não era mais tão fácil subir as escadas que levavam às prateleiras mais altas, mas ainda era possível. E assim eu ia acomodando minhas companheiras de cera de acordo com a cor, o tamanho, o perfume...


         - ... então nós acendemos a vela assim. Agora a gente se ajoelha e reza para o papai do céu.

         - Quem é papai do céu, mãe?

         - É um homem bom que mora lá em cima das nuvens. Ele olha por nós aqui embaixo e cuida da gente.

         - E o que é rezar, mãe?

         - É a mesma coisa que fazer um pedido, filha. Reza-se assim: Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o Vosso nome...

         Foi mais ou menos nessa época que comecei a entender o que significava solidão. Eu devia ter uns seis anos. Tão logo aprendi o Pai Nosso, pensei que poderia realizar meus desejos infantis: se a oração era um pedido, Deus talvez fosse uma espécie de gênio da lâmpada, como eu ouvira falar tantas vezes em contos de fadas. Ainda me lembro a primeira vez que terminei a oração sem tropeçar, nem esquecer uma palavra.

         - ..., mas livrai-nos do mal, Amém. Papai do céu, eu queria muito uma bicicleta verde. Daquelas com cestinha na frente e com campainha também! Amém! – acreditei piamente que, ao ter pronunciado corretamente a reza do começo ao fim, o Senhor me ouviria. E, como era dezembro, achei que Ele atenderia minha prece na forma de um presente de Natal; pois eu sabia – e acreditei que Ele também soubesse - que minha mãe não tinha condições de comprá-lo. O ofício, que havia sido passado dos meus avós para ela, e que eventualmente seria transmitido a mim também, permitia que tivéssemos poucas coisas além do estritamente essencial. Naquela noite, porém, me permiti sonhar: idealizei o meu presente debaixo da nossa humilde árvore de Natal, que era pequena, mas tinha o meu tamanho, e eu a achava belíssima.

         Enfim, dia 24 chegara. Chegaram também todos os parentes: tios, primos, avós, todo mundo se juntava na casa de mamãe para cear conosco. Passávamos o dia todo juntos; parte dele eu ficava no colo de meus avós, ouvindo suas histórias. Vô Luiz relembrava causos do tempo em que servia ao exército, vó Vilma relembrava as peripécias de minha mãe quando criança. Depois eu ia brincar de qualquer coisa com os primos que eram da minha idade, enquanto meus tios e minha mãe preparavam a ceia.

         A tradição de cear à meia-noite era muito forte na minha família. Então eu aguardava a hora de comer com um buraco no estômago regado a mau humor no par de horas que antecedia a refeição. Finda a comilança, abríamos os presentes. Ao sair da mesa, não vi nenhuma embalagem embaixo da árvore que remetesse ao formato de uma bicicleta, entretanto.

         Esperei meu avô chamar cada um de nós para receber os respectivos presentes, já com um nó na garganta, mas ainda com uma pontinha de esperança. Pouco a pouco, os presentes foram distribuídos, e eu não poderia ter ficado mais decepcionada com o meu: não era uma bicicleta verde com cestinha e campainha.

         Ajoelhei no chão e chorei baixinho. Rezei de novo um Pai Nosso ali mesmo, prostrada na frente de todos. Não lembro mais o que aconteceu depois disso naquela noite; só o que sei é que fui dormir de mal com Deus e com todos os seus malditos anjos.

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⏰ Última atualização: Jan 28, 2023 ⏰

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A Princesa de Cera e a MetamorfaOnde histórias criam vida. Descubra agora