PRIMEIRA ENTRADA

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A ideia inicial, não era transformar tudo isso num diário. Acho que diários são coisas de meninas. Bem, é o que penso. Mas isso acabou se tornando real. Registro tudo no meu celular. Claro, você não achou mesmo que faria isso com lápis e papel, não é mesmo? Estamos vivendo no futuro. Tudo é digital. Tudo é virtual.

A tecnologia veio e mudou o mundo.
Mudou a forma de falar, de se comunicar. Por um lado isso foi muito bom... Por outro nem tanto. O avanço foi muito rápido. A dominação foi inevitável. Alguns preveram o colapso que dava sinais de vida de longe. Ainda esperando. Se preparando para vir. Para partir pra cima quando chegasse sua hora.

E a hora veio. Mas isso é assunto para depois. Ok, primeiro gostaria de falar sobre mim. Afinal, acho que o objetivo desse diário é esse. Gravar minhas recordações. Meus momentos.
Bons ou ruins. A minha vida.

Minha infância talvez não seja digna de uma grande história. Acho que não é novidade, eu diria. Não sei quem são meus pais biológicos. Me levaram para adoção quando ainda era apenas um recém-nascido. Fui largado abandonado, na verdade. Bem, passei toda minha infância num orfanato, até o início da minha juventude. Quando um casal ingleses se interessou por mim, e acabou me levando para casa deles.

Nessa época eu já deveria ter uns 14 anos.

Pensar em coisas como o fim da humanidade, não era uma das ideias que perambulavam os meus pensamentos. Naquela época eles consistiam somente em garotas de mini-saias, carros, e em descolar algum trabalho qualquer, para comprar as coisas que achava necessário ter. Adolescência, sobe como é, parece que você tá sempre perdido. E quanto mais tenta se encontrar, mais é engolido pela grande onda de dúvidas e incertezas.

A transição para um outro nível da vida curta, e breve que temos.

Antes do isolamento...

Antes de nos isolarmos.

Antes das pessoas enlouquecerem...

Anterior á tudo isso, tive bons anos na companhia dos meus pais adotivos. Agora eles estão mortos. Vou apenas me referir á eles como "pai e mãe".

Esse era o papel deles. Compriram com orgulho. E talvez se as coisas tivessem sido diferentes, provavelmente ainda estaria com eles.

Mas eles se foram

A MORTE é A MORTE.

... E às vezes ela vem nos visitar. Levar alguém do nosso convívio diário. Alguém importante e estimado por nós. Vem e vai, e dispensa apresentações. Apenas cumpre seu papel na complicada equação da vida.

Quando estava no segundo ano da faculdade, comecei a me interessar por filmes e gravações. Gostava de cinema. Mas também queria filmar minhas próprias produções. Ostentava o sonho no rapaz que sonhava se tornar quem sabe, um grande diretor renomado das super produções...

Mas vi que não tinha dinheiro pra isso. Paciência.

Antes de continuar esse registro, devo me apresentar: me chamo Zenet. E estou morrendo de fome! Bem, essa deve ser minha próxima tarefa, assim que terminar a entrada número nove no diário de registro. O arquivo ainda não tem um nome. Achei que "minha vida" soaria muito clichê. E acho que soa mesmo. Por enquanto será só meu diário mesmo.

Seria bom se eu pudesse comer um cheesburguer, com batatas fritas e refrigerante. Nem precisava ser coca.
Conseguir um, me parece uma missão impossível nesse momento. Paciência.

Me encontro isolado

Acredito que muitos outros também estão.

Fomos obrigados. Por nós mesmos. Então temos o nosso espaço. Eu tenho o meu. Um pequeno apartamento perto do centro da cidade. É o meu lugar. Meu perímetro. Outros têm os deles. Ninguém se comunica. Cada um na sua, em outras palavras.

Me pergunto se entre eles, alguém também está registando os acontecimentos como eu. Quem sabe talvez só arquivando em áudio... Talvez.

Mais cedo, quando o Sol entrou forte pelas frestas da janela pregada, irradiando luz numa pequena área no piso da sala, olhei as partículas de poeira pairando na luz. Conferi as tábuas fazendo barricada na janela. Estavam bem pregadas.

Distraidamente confiro às horas no meu relógio de pulso: 08:10 da manhã.
Quinta-feira, 27 de junho de 20XX.

Hora de encerrar o registro número 9.
Acho que ficou bom. Tenho coisas a fazer. Checar às entradas. Conferir se nenhuma armadilha foi acionada.
Começar o nono dia do que eu venho chamando de "uma experiência de isolamento". Talvez só isolamento seja melhor. Mais direto ao ponto eu acho.

Estarei atualizando e também fazendo novas entradas no diário regurlamte.
Na medida do possível. Não existe nem registro dos dias três e quatro.
Não consegui gravar. Estava lutando pela vida. Melhor deixar á lembrança desses dias se desvanecer numa névoa cinza-prateada, que vem, envolve, e depois se dissipa no esquecimento.

Andei ouvindo barulhos noite passada. Eu não sei... Talvez eu só esteja meio paranóico... Eu não sei.
Mas, ultimamente tenho escutado coisas. Sons. Vozes. Isso não é nada bom. Não mesmo.

O confinamento leva á loucura. Me recordo de ter lido algo assim em algum livro... Em breve todos estaremos loucos. Isso é fato. Mas a questão é: quanto tempo temos?

Acho que não muito.

Não... Definitivamente não.

O fim já não é algo delineado no horizonte escarlate, dum fim de tarde de céus púrpuras, e cheiro de fogo no ar...
Quem dera fosse só isso...

FIM DO REGISTRO número 9.

Nos vemos em breve.




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