Ela era doce como um limão.
Flávia viu Sofia já algumas vezes antes do que achava que tinha sido a primeira vez que a viu, mas não lembrava. Cidade pequena, era normal já terem se esbarrado, Flávia só tinha uma péssima memória mesmo.
Da primeira vez (de verdade) que Flávia viu Sofia, estavam na mesma fila da padaria. Flávia pediu um sonho, e Sofia um suco de limão sem açúcar.
A Flávia ficou tão chocada que até compartilhou o acontecimento pra mãe quando chegou em casa.
"Oh mãe, acredita que eu ouvi a menina que tava na padaria hoje pedindo um suco de limão sem açúcar?"
"Eita, que doida."
"É, né? Quem que toma suco de limão sem açúcar, pelo amor de Deus?"
Sofia tomava.
Então, da segunda vez em que se viram, na verdade até meio que conversaram. Óbvio que a Flávia não lembrava que ela era a menina do suco sem açúcar.
"Ei, garota!"
A Flávia quase teve um treco quando ouviu essa menina desconhecida colocando a mão em seu ombro. Estava fazendo uma caminhada, concentrada demais no Podcast que ouvia para não olhar para Sofia como se ela fosse sequestrá-la ali mesmo.
"Que horas são?"
Sua suposta sequestradora perguntou; brusca, ácida, simples.
Ao menos não iria sequestrá-la.
Flávia demorou alguns segundos até se tocar de que tinha um celular em sua mão, pelo qual ainda ouvia uma voz masculina falando sobre Freud. Nem entendia mais o que ele falava, tudo o que se passava em sua cabeça era o quão mal educada era aquela garota. Mas, doce como sempre foi, rapidamente checou o horário para ela.
"09:45"
E Sofia nem agradeceu antes de voltar a sua corrida. Simplesmente assentiu, se virou e correu. Flávia contou isso pra sua mãe também, logo quando voltou pra casa.
"Mãe, fui caminhar agora e uma menina perguntou o horário pra mim e nem agradeceu quando eu respondi, acredita? Ela só saiu correndo!"
"Que menina mais azeda."
Não lembrava que essa menina era a Sofia também. A sua Sofia.
Em sua cabeça, a primeira vez que viu Sofia foi quando a avistou de longe jogando na quadra do parque. Flávia sempre foi fã de carteirinha do São Paulo, e ver aquela loira em campo com uma regata do SPFC humilhando completamente todos os caras do outro time que competiam com ela foi surreal. Precisava elogiá-la, e esperou o jogo acabar para ir falar com ela.
"Ei, menina!" Chamou enquanto Sofia bebia uma água, meio descabelada e toda suada. Ainda assim era linda. "Jogou pra caralho, viu?"
Flávia esperava qualquer coisa. Um sorriso, um "Obrigada", um "Valeu", ou até mesmo um "Eu sei, né?", mas um dar de ombros foi realmente... Meio chocante.
Chocante daquele jeito que deixa sua boca amarga, que você quase não consegue segurar uma careta de tão...
Azeda.
"Às vezes se coloca limão demais estraga a comida, né, filha? Fica ácido demais, credo."
"Oh mãe, tá me escutando? Tô contando a história ainda!"
"Ai, filha, é que você demora tanto pra contar as histórias, pensei que você já tinha terminado."
"Não, mamãe. Eu fui elogiar essa menina que jogava bem, e sabe o que ela fez?"
"O quê?"
"Assim com os ombros, ó!"
Imitou o dar de ombros de Sofia.
"Nem te respondeu?"
"Não!"
"Que menina mais azeda."
Flávia teve um Deja-vú.
"Mas então, se você exagerar no limão e ficar muito ácido, é só pôr açúcar. Ele neutraliza."
Sua mãe continuou, voltando a ignorar sua história enquanto despejava um pouco de açúcar na panela. Estava fazendo a janta.
Na semana seguinte, Flávia estava de volta no parque, foi só passear lá porque precisava de ar puro (se bem que não é nada fácil conseguir ar puro quando se mora perto da cidade onde não existe amor, mas ela tentava). Avistou de longe Sofia jogando bola na quadra de novo, dessa vez com outras pessoas, mas de novo ela era a melhor jogadora em campo.
Flávia não tinha esquecido do quão amarga ela tinha sido outro dia, mas se sentiu hipnotizada pela grama verde da quadra. Ou talvez pelos olhos verdes de Sofia, que foram direcionados a si por pouquíssimos segundos quando se sentou na arquibancada improvisada do parque novamente. Só resolveu assistir o jogo, simplesmente.
"Joguei bem hoje?"
Pela segunda vez, mesmo que não lembrasse que aquela era a segunda vez, Flávia quase teve um treco quando Sofia, do mais absoluto nada, lhe fez uma pergunta enquanto estava concentrada com outra coisa. No caso agora não era um Podcast, mas sim um jogo de perguntas e respostas que tinha começado a jogar depois que a partida na quadra tinha acabado. "Qual é a substância que forma o ácido do limão?", era a pergunta da vez. Talvez tenha perdido o tempo da resposta enquanto encarava a loira com os olhos arregalados.
Os olhos de Sofia eram realmente muito mais bonitos de perto, mas Flávia se esforçou pra tentar raciocinar uma resposta para a pergunta, mesmo que quanto mais tentasse menos via sentido na situação. Devia ter ouvido errado.
"Quê?"
"Perguntei se eu joguei bem hoje. Cê falou que eu joguei pra caralho aquele dia, quero saber se joguei bem hoje também."
Flávia poderia ter sido grosseira. Poderia ter dito que ela não tinha jogado bem apenas pela vingança da reação extremamente amarga que recebeu naquele outro dia, dizer que não estava reparando o suficiente.
Mas Flávia era doce demais para isso.
"Sim, jogou demais."
Falou, sincera. Podia jurar que viu uma leve sombra de um sorriso no rosto dela, mas durou pouco.
"Gosta de futebol?"
"Sim, sou são-paulina... E você?"
"Gosto, né, você já me viu jogando duas vezes."
Amarga. Azeda.
Flávia levou como brincadeira. Deu risada, se levantando do banco para ficar na mesma altura que ela, em pé. Era mais alta que Sofia, e isso a deixou com o ego estranhamente elevado.
Talvez estivesse neutralizando o ácido daquele limão com seu açúcar.
"Eu quis dizer, tipo, pra que time você torce."
"Ah..."
E de repente toda aquela postura bronca de Sofia foi por água abaixo. Pareceu até meio envergonhada. O que era ainda melhor para o ego de Flávia, que já até mesmo sabia qual era a resposta (a viu com a camisa do São Paulo na semana passada), mas queria ouvir da boca dela. Queria que ela baixasse a bola. Que o ácido do limão não queimasse sua pele embaixo daquele sol quente de 12h.
"Eu também sou são-paulina."
Flávia sorriu. Sofia a acompanhou no sorriso, mas o seu era bem mais forte, tomado pela azeda malícia.
"E jogar, você joga pra qual lado?"
O ácido era bem forte, afinal. Talvez ele estivesse corroendo o cérebro de Flávia, pois não fazia ideia do que Sofia queria dizer com aquela pergunta.
"Não, eu... Não jogo..."
Sofia riu. E o riso dela era muito bonito. Muito.
"Eu jogo pros dois lados. E eu vou ter um jogo amanhã, se quiser ver, duas da tarde... Vou te esperar."
Sofia foi embora. E Flávia só foi entender sobre o que ela estava realmente falando quando chegou em casa e ficou refletindo sobre por um tempo considerável enquanto assistia a um jogo qualquer do Flamengo que passava na televisão. Nem contou pra sua mãe o que aconteceu dessa vez, ficou com vergonha.
Mas estava na arquibancada no dia seguinte, 11h45. Se achou meio besta por ter chegado tão cedo. Depois não se arrependeu, já que foi cedo o bastante pra poder sentir o cheiro cítrico de Sofia antes do jogo.
"Eu vim, viu?"
"Tô vendo, não sou cega."
"Mas você nem olhou na minha cara!"
"Tô sentada do seu lado, não é suficiente?"
"Qual seu nome?"
"Sofia."
"Oi, Sofia. Nome bonito. Sou a Flávia."
"Flávia me lembra favo de mel. Ugh, muito doce."
"O que você quis dizer ontem perguntando pra qual lado eu jogava?"
"Você não entendeu?"
"Entendi, mas só quero ter certeza. Você é muito azeda"
"Eu gosto de azedo."
"Acho que eu também gosto. Um pouquinho. Jogo pros dois lados, também."
Sofia sorriu, e Flávia também.
"Tá, vai... Eu gosto de doce."No fim, o suco favorito de Flávia sempre foi de limão. Só que com açúcar.
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Ela era doce como um limão
ContoFlávia era doce. Sofia era azeda. Ela era doce como um limão.