Querino e o Poço

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Seu Querino é uma enciclopédia viva de Santo Antônio. Possui mais de 70 anos apenas na cidade: não viu ela nascer, mas viu boa parte de sua história moderna. Teve infância humilde e rigorosa; casou-se cedo com dona Lúcia, sua esposa, de quem nunca separou, e com quem teve 8 filhos, 5 moças e 4 rapazes, todos já casados, e que lhe deram vários netos.

Há alguns anos, já aposentado, abriu defronte a própria residência a sorveteria onde o conheci, na praça da Salgadeira. Passei vários meses tomando sorvete lá sem nunca falar muita coisa com ele: um dia, trouxe minha noiva para tomar sorvete junto comigo, e após conversarmos sobre política, descobrimos com Seu Querino um gosto em comum, apesar de termos alinhamentos diferentes.

Nós tornamos amigos, e passamos a compartilhar nossa vida. Seu Querino ama a vida pública como ninguém: além de ter saído candidato a vereador nas últimas eleições, apesar de não lograr ser eleito, já foi diretor da Filarmônica do Município, presidente da Associação de Pais da escola estadual aonde um dos filhos estudava, e presidente de Associação de Bairro da Urbis II, em todas as ocasiões construindo coisas muito úteis para seus concidadãos.

Seu Querino conhecia a história política da Bahia e de Santo Antônio como ninguém; falava de muitos luminares de nossa vida pública como se os tivesse conhecido, e em alguns casos, realmente chegou a interagir brevemente com alguns deles.

Conversando com Seu Querino, descobri que assim como Hélio Valadão, cuja autobiografia tive a oportunidade de ler, ele tinha muitas histórias, e que seria interessante colocá-las num livro posteriormente; porém, exatamente por serem muitas, isso exigiria um grande trabalho para se realizar.

Surgindo o edital que motivou esta crônica, descobri entre todas, aquela que seria mais interessante de se colocar num pequeno texto: quando Seu Querino, ainda um pai de família de meia-idade, distribuiu água para seus vizinhos, durante um corte no fornecimento. 

Quando ouvi a história das primeiras vezes, acreditei que ele tinha cavado um poço artesiano, distribuindo uma dádiva da natureza entre seus concidadãos.

O procurei na sorveteria, para coletar os detalhes da história, que então pretendia transformar em conto. Sua gata, Miúcha, e o pinscher, Jake, sentaram-se do nosso lado, enquanto eu coletava as informações com Seu Querino. Ele me contextualizou a situação: era o começo do governo Sarney, quando a Ditadura Militar tinha acabado, mas a Constituinte ainda não tinha sido convocada.

O prefeito era o Dr. Renato Machado, amigo do Hélio e parente de uma de minhas superiores no serviço. As grandes represas do Recôncavo, a do Rio da Dona e Pedra do Cavalo, ainda não tinham sido construídas. Assim, o fornecimento de água não tinha a regularidade de hoje, além de haver muito menos encanamentos. 

Também não havia registros de água nas residências: os poucos privilegiados que tinham acesso aos serviços da EMBASA, pagavam pelos mesmos uma taxa única. Seu Querino pagava a taxa: porém há muito tempo há água não vinha.

Na época, ele ainda trabalhava como caminhoneiro, fazendo fretes na região. Num dos momentos em que ele estava em casa, Dona Lúcia reclamou da situação. Seu Querino tomou a solução que pode: escavou até onde se encontrava o cano de água, instalou uma bomba elétrica no mesmo, e passou a puxar a água que ficava presa no centro da cidade, abrindo uma bica para extraí-la. 

De início, apenas sua família fazia uso. Porém, alguns vizinhos, passando por necessidade de água, pediram a Seu Querino que desse um pouco a eles: e Seu Querino franqueou o acesso a quem viesse com baldes coletar.

Quando ele não estava em casa, um dos seus filhos ajudava as pessoas. Funcionários da companhia vieram a casa de Seu Querino reclamar. Ele respondeu que sua família estava sofrendo necessidades, e que ele fez o que precisava ser feito; ele pagava regularmente suas taxas, quem não estava fornecendo o que estava sendo pago era a companhia.

Os funcionários, é claro, perceberam que as outras pessoas que estavam usando a bica provavelmente não pagavam taxa alguma, porém talvez tenham pensado que não valia a pena colocar a população contra a companhia por uma perda tão pequena. Eles eram o governo. Aquelas pessoas trabalhavam, pagavam impostos, o governo iria recuperar o que estava perdendo agora depois.

Seu Querino e sua bica foram deixados em paz. Sua família, e quem mais da localidade precisasse de água, continuaram a pegá-la, até a companhia conseguir normalizar o fornecimento. 

Anos depois, as represas foram construídas, resolvendo não só a falta d'água, como também os alagamentos que afetavam a região.

 O governador ACM, percebendo que Pedra do Cavalo tinha potencial hidrelétrico, mandou instalar também turbinas na mesma, que passou a fornecer água e energia, como a usina de Paulo Afonso.

Seu Querino seguiu sua vida. Manteve sua fé em Deus, seu amor pela justiça, continuou servindo de referência para os filhos e netos: uma de suas filhas abriu recentemente uma pequena loja de informática ao lado da sorveteria, usando o espaço de uma pequena sala onde o pai mantinha um local de culto, e guardava um pula pula portátil que monta para as crianças do bairro, aos fins de semana.

Elas pulavam o dia inteiro, enquanto seus pais tomavam sorvete. Ele nunca cobrou entrada: armava o pula pula na praça, e voltava para sua loja. Alguns vizinhos mais velhos, de passagem, agradeciam o ato de altruísmo de anos atrás, e ele sorria, feliz.

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⏰ Última atualização: Feb 14, 2023 ⏰

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