Entre formas brancas, com o fundo azul, gigantes lutavam entre si, um navio de piratas navegava ao lado de um pato de mesmo tamanho, um carro de corrida, com uma brisa, logo se transformava em um escudo, que é usado por um príncipe para segurar o bafo de um dragão, isto lá em cima, porque sobre o concreto cinza havia apenas um garotinho de carne e osso, que ainda não tinha enjoado do seu presente de oito anos.
Ele olhava para a tela de formas mutáveis que ora era bicho, ora era máquina, ora não se parecia com nada, mas ainda prendia sua atenção.
De certo ele já sabia, havia sido avisado, mais de uma vez, da boca de seu pai e de seus primos mais velhos, que aquilo que se passava na frente dele não era real, era apenas sua imaginação, fazendo formas ganharem vida, ganharem personalidades e fala. Convencido por eles, ele pensava, "De que adianta? Ficar aqui olhando para o nada e ver algo", mas sempre que havia um dia azul e nada a se fazer, lá estava ele, deitado sob o toldo do quintal, procurando e encontrando personagens que ele só via nas telas planas e outros que só ele conhecia.
Neste dia, não conseguiu ver muita coisa. De dentro da casa, ouviu um grito, era seu pai. Urgia para que ele se levantasse do chão sujo, iria pegar bicho ou qualquer sorte de coisas ruins. O garotinho não era desobediente, nem queria ter bicheira ou doença, mas antes de se levantar, olhou uma última vez para cima e tentou responder sua própria dúvida, como imaginava que os adultos faziam.
"De que adianta? Não sei, mas de que adianta estudar? De que adianta ver TV? De que adianta qualquer coisa, se não para viver? E se eu viver aquilo que vejo, então não é real?"
Mais perguntas que respostas haviam surgido, mas tudo bem, o garotinho iria olhar para cima sem responder qualquer uma delas até crescer e se tornar adulto, aí deixaria de olhar, porque ser adulto não é imaginar, ser adulto é olhar para o chão, é firmar seus pés e trabalhar, é conseguir coisas para que essas coisas não faltem para si e para sua família, é deixar de querer, é conseguir aquilo que é necessário, pelo menos é o que o garotinho havia aprendido a pensar.
E o tempo passa, ele se tornou pai de família. Enquanto preparava o almoço, viu seu filho deitado sobre o concreto cinza. Lá estava ele fazendo nada, só olhando para o céu, só imaginando coisas não reais, coisas que não colocam comida no prato, coisas que não fazem muros se erguerem ou motores rodarem. Coisas de criança.
O pai pensou em gritar com o garoto para se levantar, pensou em lhe dizer o que haviam lhe dito, mas ele se lembrou de quando seus dias eram azuis e deitou-se ao lado do filho, os dois garotinhos viram coisas não reais, riram quando o pato atravessou o navio no meio, quando o príncipe derrotou o dragão, quando os gigantes apertaram as mãos e se tornaram amigos, sonharam juntos até o tempo passar. Sem nem ter pensado muito, veio na cabeça do pai uma resposta: "De que adianta? Não sei, mas eu gosto disso". Nesse dia o arroz queimou, mas não se ouviu reclamação de ninguém.
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Dia Azul
Short StoryNeste miniconto, um garoto está deitado sobre o concreto, indagando quão real é o que ele vê no céu e de que adianta fazer isto. Este garoto se torna homem e tem um filho que se deita e deixa sua imaginação lhe guiar como ele fazia antes. O que um p...