Tenho uma escada no meu quarto.
Vamos responder de uma vez a pergunta que todo mundo faz ao entrar pela primeira vez nesse meu espaço particular. Durante muito tempo eram os três dados que chamavam atenção, mas desde aquele rearranjo, a escada tem tomado toda atenção. Aparentemente porque perdera totalmente a sua funcionalidade. Então, sim! Eu tenho uma escada no meu quarto.
E ela fica escorada na parede, é notório e qualquer pessoa consegue ver. Acho que ela atrai os olhares antes de qualquer coisa. Cama, armário, escrivaninha, todas aquelas coisas triviais que se vê e se pensa ao projetar mentalmente o que viria a ser um quarto. O que chama atenção é o que foge a regra. Aquilo que não possui utilidade nenhuma. Não é um enfeite, não orna uma bancada, nem possui apelo artístico. Simplesmente uma escada escorada na parede de metal, prata, em alguns pontos fosco de tanto mudar de lugar.
Eu sei a história. Eu sei porque aquela escada está ali e faz total sentido. Ela tinha funcionalidade, mas para quê jogar fora depois que o cenário mudou? Algumas coisas podem atender a outros interesses. Então, sob meu olhar lhes digo: a escada talvez seja o principal item em meu quarto e não entrarei em detalhes nas conversas rotineiras. Nem tudo precisa de uma certa cerimônia. Deixa a procissão no seu passo, se não, já sabem, vira arrastão.
Mas é simplesmente uma escada e a pergunta que se segue: leva pra onde? Pois ora, escada precisa levar a algum lugar? Não vê que ela apenas se escora contra a parede. Do chão até o último degrau é escada, daqui pra cima é só parede. Todo começo, inclusive o primeiro, começa a partir de um fim. Depois de escada, só vem parede.
E a parede é cinza, enquanto a escada é prata (com exceção dos pontos negros já mencionados). Percebam aqui uma harmonia necessária. A paleta de cores faz total sentido e, dito isto, não vejo a necessidade de demais razões para manter a escada. Ela combina. Não funciona, mas combina, assim como o casaco que Guilherme me emprestou e usei por muito tempo. Aliás, preciso pegá-lo qualquer dia.
Escada que sobe ou que desce? Ora, trata-se de pergunta que não cabe aqui e não possui função nenhuma fora de um diálogo sobre cobras. Não que o problema esteja na sua falta de importância nesse roteiro, mas em algum momento ela já ganhou tantos significados que não entram na simbologia inexistente dessa carta. Repito para que não tenham dúvidas: trato simplesmente de escadas, que se permitem ser escada sem função, desbotada em partes. Sempre escada.
Uma estética industrial nada funcional. Eu gosto dessa imagem, da escada em meu quarto. Às vezes eu a uso de cabide e penduro as roupas para não fazer aquele monte na cadeira. A escada também pode vir a ser qualquer outra coisa que eu quiser (porém nunca foi) e, na mesma medida, pode vir a ser simplesmente escada.
E se todo começo, começa a partir de um fim, acredito que já saibam do que estou aqui tratando. Algumas eu destruí, outras achei que teriam melhor utilidade guardadas naquela caixa que por algum tempo ficou embaixo da farmácia improvisada. A composição harmoniza-se com diferentes remédios sobrepostos.
Recentemente montei uma farmácia mais rápida. Para aqueles remédios que em momentos de maior urgência preciso alcançar sem esticar muito os braços. Em determinadas situações tudo parece ser urgente. E, de certo modo, há uma urgência indissociável no ser e no vir-a-ser, constantemente posta para discussão calada, muda e, claramente, escondida.
Voltando ao começo, vamos começar talvez do fim. É que não foi a escada que eu escondi no sótão, foi somente essa carta. E antes que perguntem: não, eu não utilizei aquela escada. Usei escada que sobe, que em algum momento teve que ser escada que desce, e deixei aquela ser quem se apenas é. Escorada na parede ela cumpre muito bem a sua não-função como antibiótico tomado precisamente de 8 em 8 horas.
Agora que já falamos do começo, vamos voltar ao fim? Ao invés de olhar pra escada, vamos olhar obrigatoriamente pra parede onde a dona aranha acaba de subir. Peço que não olhem pra teia que foi montada, mas, como Louise já queria nos amedrontar, encarem seus pequenos grandes ovos ali expostos.
Carta para escada que não sobe, nem desce

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aquelas cartas que destruí
Short StoryEnquanto algumas são encontradas por mero acaso ao longo do caminho, algumas são propositalmente postas na obscuridade. Algumas querem ser perdidas e dilaceradas das maneiras mais pensadas e impensadas pela racionalidade. O problema de se destruir...