A operadora de sono - Luna Romero

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Baseado em A Bela Adormecida e O Patinho Feio

Aviso de conteúdo: suicídio; violência


Coisas boas acontecem com pessoas que sabem ser obedientes. Era o que a mãe adotiva de Vera costumava dizer quando ela era criança, geralmente depois de lhe dar uma surra. Boa parte dos ensinamentos daquela mulher não fizeram muito além de adoecer sua mente. Mas aquele, em específico, Vera descobrira ser a mais pura verdade. Era o lema oculto dos laboratórios de exoneurologia da Corporação Cygnus, afinal. E não era necessário que a frase estivesse delineada nas paredes de mármore, assim como o slogan da empresa. "Transformamos sonhos em realidade" era apenas um amontoado de palavras chamativas.

Dentro daqueles corredores frios, era a capacidade de discrição e obediência que separava os funcionários comuns dos operadores, como Vera. E era sua facilidade em estar sempre em silêncio e seguindo ordens que lhe garantira um salário bom o suficiente para sobreviver e manter-se o mais distante possível de sua família adotiva, protegida das surras e das humilhações. Graças à Cygnus Corp., ela já não precisava mais odiar pés largos, ressentida por eles lhe renderem o apelido de pata. Ou temer que seus irmãos a jogassem em um lago novamente, mesmo que ela não soubesse nadar, apenas porque, como sempre diziam, "era o lugar onde as patinhas deveriam estar".

Aquele emprego havia tornado sua vida previsível e confortável, como sempre desejara. No início, fora quase como encontrar uma família de verdade, que a acolhia e valorizava pelo que ela era. Por isso, Vera era grata. E expressava sua gratidão através da única linguagem que seus supervisores conheciam: metas e números. Resultados. Trabalho duro e ininterrupto, sem hesitações.

Porém, naquele dia, sempre que seus olhos insistiam em espiar o escritório de vidro ao lado de sua sala de operações, onde sua colega Fawna estava terminando de ajudar a nova colaboradora a preencher seu contrato, Vera não conseguia convencer suas pernas a funcionarem.

- Vagabundos... - O resmungo aborrecido de sua supervisora, Flora, trouxe sua atenção para a televisão próxima às duas, onde o noticiário da corporação repetia a imagem de dezenas de pessoas sendo dispersadas pelos tiros dos seguranças do prédio, mais cedo. - Eles deveriam agradecer ao prefeito por ter vendido aquelas escolinhas carcomidas para a Cygnus, ao invés de perder um tempo precioso tentando impedir algo que vai beneficiar a cidade inteira, agora que todos os centros educativos terão nosso padrão de qualidade. Se querem que seus filhos continuem sendo praticamente analfabetos, ao invés de se esforçarem o suficiente para pagar uma educação de qualidade para eles, então ao menos não atrapalhem os outros pais de aproveitarem essa oportunidade.

- Achei que eles estivessem protestando contra o nosso setor, também... - Vera se arrependeu daquele comentário involuntário no segundo em que ele lhe escapou, especialmente quando os olhos de Flora estreitaram-se em sua direção.

- Oh, eles estavam! Se pudessem, subiriam até aqui e destruiriam tudo, pode ter certeza. - A supervisora revirou os olhos, enojada. - Fico feliz que os seguranças não tenham sido benevolentes com aquele bando de baderneiros. Acredita que um deles teve a coragem de gritar para as câmeras que estamos começando a aliciar jovens? Onde eles acham que pessoas humildes e ignorantes, como nossos colaboradores, vão conseguir sustento, se não com um emprego digno, como o que oferecemos a eles? Mas nenhum desses desocupados gostaria de acolhê-los em suas próprias casas, disso eu tenho certeza!

Abaixando o olhar, Vera aquiesceu, esperando que sua resposta silenciosa fosse o suficiente para satisfazer Flora, como sempre acontecia. Porém, para seu desprazer, aqueles olhos atentos continuaram focados nela, avaliando-a com uma precisão semelhante à das máquinas que operava todos os dias.

Era uma vez um final distópico - contosOnde histórias criam vida. Descubra agora